Encolheram a família: cresce o número de casais que não têm filhos
Eles preferem se dedicar à carreira e levar uma vida despreocupada, fenômeno que pode mudar a sociedade
No festival de besteiras que assolam as redes sociais há de tudo. Além das fake news, por óbvio, que representam o execrável alimento para a polarização política, grassam nesse ambiente bobagens de toda sorte — de memes grosseiros a piadas sem graça. Aqui e ali, porém, brotam postagens que ajudam a entender mudanças relevantes de comportamento da sociedade. A novidade, agora: a onda de casais sem filhos e sem vergonha de ostentar uma vida despreocupada, isenta de responsabilidade com a parentalidade. Eles postam cenas de viagens, restaurantes e passeios. Lá fora, o fenômeno já foi batizado de dink, sigla em inglês para double income, no kids, ou “renda dupla, sem filhos”. É tendência global. O acrônimo nasceu, a rigor, em 1987 — mas ganha tração inédita, ancorada pela estatística de um mundo que encolhe.
Nos Estados Unidos, a taxa de nascimentos vem caindo cerca de 2% a cada ano desde 1973. De acordo com o censo de 2022, 43% das famílias americanas ainda não tinham filhos no momento da pesquisa. No Brasil, o ritmo demográfico é semelhante. Há 25 anos, o número de casais que decidiam não ter rebentos era de 13%. Hoje, a taxa subiu para 19% (veja o quadro). Para alguns, a decisão de não ter bebês é baseada em razões como a carência de recursos financeiros ou a falta de suporte familiar. Para uma parcela crescente, contudo, há um quê de hedonismo, alimentado pela capacidade de poupança. Estudo da consultoria MarketWatch aponta que 48% dos dinks destinam o dinheiro que gastariam com filhos a viagens. Pouco mais de um terço diz temer custo de vida alto em demasia para manter uma criança e quase 70% têm certeza de que não vão se arrepender da decisão no futuro.
Essa nova formação familiar impacta, de modo natural, os hábitos de consumo. “A ideia de liberdade passa a estar relacionada à experiência, à mobilidade”, diz o sociólogo Gabriel Rossi, professor e pesquisador de consumo e comunicação da ESPM, de São Paulo. “Ser bem-sucedido significa viajar e conhecer diversas localidades.” Não à toa, pousadas, hotéis e condomínios são pensados para essa nova configuração minimalista. A maré tende a crescer. “Cada vez mais veremos algoritmos dos serviços de compras entregando ofertas que contemplam tal desenho familiar, novelas mostrando o estilo de vida, celebridades promovendo esse padrão social”, completa Rossi.
O ciclo de mudanças na tradicional configuração familiar começou com o avanço da emancipação feminina. Tratava-se, a partir daquele momento, em virada esperada e saudável, de não mais precisar ficar em casa, cuidando das atividades domésticas e da prole. Dos casais com cada vez menos rebentos chegou-se ao fenômeno atual dos “sem-filho”. Há, inclusive, trabalhos de investigação científica que comparam os patamares de prazer e sofrimento, alegrias e tristezas, entre solteiros, casados, divorciados, separados e viúvos. O grupo populacional aparentemente mais saudável é o de mulheres que não são mães, segundo relatório publicado pelo professor de ciências comportamentais Paul Dolan, da London School of Economics, em livro ainda inédito no Brasil, Happy Ever After.
Não se trata de mera e tola negação da maternidade, mas de constatação feita a partir de condições reais, de um cotidiano ameno — ainda que sem a emoção de fazer andar a árvore genealógica. Quem vê de longe a postura dos “sem-filho” arrisca, vez ou outra, a revelar algum incômodo. Como assim, não ter ninguém para cuidar dos pais da velhice? O papa Francisco chegou a se manifestar sobre o tema, chamando a conduta de egoísta. Convém lembrar que o pontífice, ao tocar no vespeiro, pode estar apenas dando voz à necessidade de aumento da taxa de natalidade em países da Europa, sem o qual os sistemas de previdência podem vir a quebrar, com os poucos jovens a manter o imenso contingente de idosos.
Tudo somado, em outro capítulo cruel da civilização, quase sempre a “culpa” recai sobre as mulheres, porque somente elas podem dar à luz. É injusto. Trata-se de escolha a dois. Tão legítima que muitos casais da família dos “sem-filho” passaram a ostentar e celebrar a vida como ela é, sem rebentos ao seu lado em viagens, restaurantes e passeios.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2024, edição nº 2895