O afã humano de alterar a própria imagem projetada no espelho vem se pronunciando com cada vez mais intensidade conforme os bisturis se tornam espécies de varinhas capazes de operar grandes transformações. Os primeiros registros de procedimentos estéticos datam do século VI, na região onde hoje se localiza a Índia, com propósito muito distinto do atual: retirava-se pele da testa para reconstruir narizes impiedosamente mutilados como condenação de crimes. Já a cirurgia plástica moderna é um advento pós-I Guerra Mundial, quando a medicina entrou em ação para reconstruir o rosto de soldados feridos. Sua função embelezadora ingressou em cena para valer na Hollywood de 1940 — documentos sugerem que até a estonteante Marilyn Monroe teria recorrido a intervenções para maximizar suas qualidades naturais. Pois o mundo girou, o cardápio de técnicas se ampliou, o preço baixou — e não deu outra: uma corrida aos consultórios, encabeçada por brasileiros, seguidos de americanos e mexicanos.
O que vem perturbando especialistas nos dias de hoje é a faixa etária — em franco declínio — dos que buscam tais mudanças. De acordo com um recente estudo da empresa de análise de mercado HSR, que capta tendências de comportamento, 80% das pessoas entre 18 e 25 anos desejam realizar algum procedimento estético — de uma mexidinha leve a clássicas cirurgias. É consideravelmente mais gente do que depois dos 40 anos, quando 60% manifestam essa aspiração, e após os 60, etapa em que 40% gostariam de alterar características físicas com a ajuda da ciência.
O motor para o desejo de mudar tão precocemente traços do semblante ou do corpo tem conexão direta com a baixa autoestima, que atormenta 25% dessa jovem população, como aponta a pesquisa. Numa fase de formação de valores e consolidação da personalidade, é esperado que inseguranças se façam presentes. O que chama atenção aí são os desdobramentos desse sentimento, que tem causado tanta insatisfação em relação à própria imagem quando se dá os primeiros passos na vida adulta. “Tradicionalmente, os mais velhos eram os grandes interessados nos ajustes estéticos. Isso se inverteu”, pontua o médico Marcus Vinicius Mafra, membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP).
Uma questão que se impõe diante de gerações sempre lembradas pelo alto grau de empatia e tolerância diante de quase tudo que foge a um padrão preestabelecido é: por que, afinal, elas agora dão demonstrações de querer se encaixar em um único molde? Está claro que um forte impulso rumo aos consultórios vem da onipresença das redes sociais, onde os brasileiros passaram, em média, cinco horas diárias em 2021. Nelas, eles se expõem como nunca antes e tomam contato com um universo no qual o conceito de beleza é definido por filtros que eliminam as imperfeições. E assim a pressão vai aumentando, como relata a estudante de biomedicina Maria Thiele, 23 anos, que decidiu colocar silicone influenciada por comentários negativos. “Comecei a achar que ficaria atraente se tivesse mais peito”, reconhece ela, feliz com o resultado.
Que fique claro: a vontade de mexer em algum ponto do rosto ou da silhueta que cause incômodo não é necessariamente um problema. “Quando isso ocorre por uma decisão pessoal e não por uma cobrança social, pode ser perfeitamente saudável”, explica a psicóloga Ceres Araujo. A analista de marketing Fernanda Teles, 24 anos, sempre teve um nariz que considerava “grande e pouco empinado”. Acabou encarando uma rinoplastia — entre as intervenções mais procuradas no país, junto com a lipoaspiração na região abdominal, a harmonização facial e o silicone nos seios. “Ganhei segurança no trabalho e em outras situações sociais. Hoje, me sinto bonita”, diz, bem resolvida com o nariz novo. O cenário que mais faz tremer os especialistas é a multidão de adolescentes na corrida por intervenções estéticas. Segundo a SBCP, o número de procedimentos feitos em jovens de 13 a 18 anos avançou 140%. “A orientação é que se aguarde pelo menos os 18, até que o corpo se desenvolva por completo”, observa o médico Marcus Vinicius Mafra. “Adolescentes ainda não são maduros o suficiente para fazer uma escolha tão delicada.”
As mulheres são as que mais manifestam o desejo de alterar características físicas: 40% mais do que os homens. “O público feminino é alvo de maior pressão, é fruto da cultura ainda machista”, analisa Karina Milaré, à frente da pesquisa da HSR. Muita gente com pendor para mudar a imagem é acometida por aquela sensação de que sempre dá para “melhorar mais um pouquinho”. A advogada Larissa Gentil, 25, submeteu-se à primeira intervenção há três anos, e não parou mais. Começou com silicone nos seios, passou para uma lipoaspiração nos braços, outra no abdômen e, por último, um enxerto de gordura nos glúteos. “Vários traços da minha genética não me agradam e vou continuar mexendo no que for possível, já que me faz bem”, diz ela, que agora mira o nariz. Tomados todos os cuidados médicos, a escolha nesse campo é livre, mas vale a ressalva. “A busca por um padrão inatingível pode levar a exageros e gerar frustração”, afirma Ceres Araujo. Fica a reflexão.
Publicado em VEJA de 28 de setembro de 2022, edição nº 2808