Em uma passagem de Cenas de um Casamento, a magnífica série feita por Ingmar Bergman para a TV sueca em 1973, e que, condensada, viraria filme, Katarina, personagem vivida por Bibi Andersson, pronuncia uma fala que, de tão verdadeira, é implacavelmente destruidora. “Nada é mais assustador do que um marido e uma mulher que se odeiam”, diz, em uma alusão ao pensamento de August Strindberg (1849-1912), o dramaturgo sueco que dissecou as dores da vida a dois com precisão desconcertante. Katarina vive com Peter, interpretado por Jan Malmsjö, um relacionamento em crise. No início da trama soa como contraponto a aparente felicidade conjugal do casal protagonista, Johan, o papel de Erlan Josephson, e Marianne, interpretada lindamente por Liv Ullmann. Conforme a história se desenrola, no entanto, escancara-se a angústia que permeia a vida cotidiana, e aparentemente tranquila, de Johan e Marianne. E então brotam dor, ressentimento e desamor. E a frase que lá atrás havia sinalizado o que esperar do enredo transforma-se na síntese melancólica da união tóxica.
Ao longo das últimas semanas, o mundo assiste a uma espécie de transposição para a vida real da dilaceração conjugal cortante exibida por Bergman há 49 anos. Curioso é que, por serem atores, os envolvidos no espetáculo — Johnny Depp e Amber Heard — contribuem para causar nos espectadores uma certa confusão sobre os limites da ficção de Hollywood em torno de casamentos falidos e a guerra verdadeira, travada pelos dois durante os quinze meses em que estiveram casados. Depp e Amber entabulam uma batalha judicial desde que o ator decidiu processá-la depois que ela publicou um artigo, em 2018, descrevendo abusos físicos e emocionais que teria sofrido em um relacionamento afetivo. A atriz não citou o nome de Depp, mas o artista — e o resto do mundo — entenderam que o relato era sobre ele. O astro da franquia Piratas do Caribe acusa a ex-mulher de ter prejudicado sua carreira e pede indenização de 50 milhões de dólares. O que se viu no tribunal de Virgínia, nos Estados Unidos, até agora foi deprimente. Depp e Amber tornaram públicos detalhes de uma convivência doentia, raivosa, perniciosa. Os dois partilhavam uma rotina de agressões emocionais e físicas caracterizada por xingamentos, acusações mútuas de traições, deméritos e atos violentos. Houve inclusive menções a episódios grotescos, como o exposto por Depp, segundo o qual a ex-mulher teria defecado na cama do casal. Ela diz que o ator teria escrito seu nome em uma parede com uma mistura de sangue e de urina.
O show de horrores tornou-se um sucesso de audiência, algo esperado em uma sociedade cada vez mais afeita ao consumo das mazelas humanas como modalidade de entretenimento. Afastado o voyeurismo, contudo, acompanhar o triste espetáculo é ótima oportunidade para refletir e trazer publicidade aos casamentos envenenados, um modelo de união que não é novo, claro, mas sobre o qual a ciência começa a se debruçar em busca de saídas que libertem os indivíduos de uma existência fadada à tristeza e a prognósticos de saúde física ruins. Sabe-se que relacionamentos infelizes elevam o risco de doenças crônicas e psiquiátricas, depressão e ansiedade.
Na concepção acadêmica, uma relação afetiva saudável é aquela na qual o indivíduo se sente feliz e posiciona-se como um igual ao seu parceiro. “Os relacionamentos são benéficos aos envolvidos e nenhum o sente como um fardo”, descrevem em trabalho recente os responsáveis pelo Centro de Conscientização da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos. Não se trata de propor convivências perfeitas, obviamente, pela simples razão de que elas não existem. O que os estudiosos explicam é que todas as relações são costuradas a partir de uma mistura de comportamentos. Eles podem ser bons ou nocivos, mas é o saldo final que determina se são salutares. Isso quer dizer que, no fim das contas, as atitudes benfazejas precisam preponderar. “Se uma pessoa me traz mais coisas positivas do que negativas, sua presença tende a ficar boa”, diz o psicólogo Ailton Amélio, pesquisador do tema há três décadas.
Quando a balança pesa para o lado negativo, entra-se no espectro prejudicial das conexões afetivas e, a partir daí, pode se desenrolar uma vivência em comum bastante complicada. Na origem dessas relações em geral reside a necessidade de poder e controle, característica que nem sempre está explícita na dinâmica do casal. Uma situação comum é quando um dos parceiros sistematicamente faz o outro se sentir mal em episódios que envolvam a ambos. Não há gritos ou ofensas, mas a mensagem sutil deprecia e leva culpa ao companheiro. É uma forma de manipulação cujo objetivo é transmitir a informação de que o manipulador é o único capaz de manter a vida nos trilhos. E, portanto, merecedor do comando da convivência conjugal. Nesse mesmo pacote, costumam vir alusões à suposta inferioridade intelectual, financeira ou emocional do outro ou tentativas de fazê-lo duvidar de si mesmo. Esse tipo de ação pode dar origem a uma escalada de outros padrões nocivos, chegando inclusive a repetidas agressões físicas ou verbais.
Como mostram os constrangedores depoimentos de Depp e Amber, contudo, nem sempre é fácil estabelecer quem é a pessoa tóxica da relação. No caso dos atores, os dois apresentaram comportamentos reprováveis, passando a impressão de que se alimentavam mutuamente do processo de destruição em curso. “Existe na estrutura dos relacionamentos e do casamento algo que cria problemas e desencontros”, diz a antropóloga Mirian Goldenberg, reconhecida estudiosa do assunto. “Por isso, a questão de quem é a vítima e quem é o abusador é relativa”.
Ressalve-se que a batalha muitas vezes silenciosa entre inimigos íntimos é muito diferente do que se vê na violência doméstica, condição na qual agressor e agredido são claramente identificáveis. Pode não haver tapas, e ainda assim os sinais de esgotamento brotarem assustadoramente. A psiquê humana é tremendamente intricada, pessoal e intransferível, e por isso mesmo não autoriza regras generalizadas. Vale aqui o lugar-comum: cada caso é um caso. Em geral, sobre o desejo de rompimento, e a manutenção do cotidiano apodrecido, prevalece o medo da solidão, da dificuldade financeira que certamente virá e de outras dependências tão comuns a homens e mulheres. Mas as saídas são possíveis e exequíveis. O primeiro passo é reconhecer a situação. O segundo é interromper o círculo vicioso buscando ajuda terapêutica, na família e nos amigos. O inferno entre quatro paredes não pode durar para sempre.
Publicado em VEJA de 25 de maio de 2022, edição nº 2790