Apetite por ‘true crime’ tem origens ancestrais, dizem autores
Historiador americano e escritoras brasileiras também falam sobre como novos livros, filmes e podcasts ganharam respeito e credibilidade
A série documental Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez, da HBO, e o podcast A Mulher da Casa Abandonada, do jornal Folha de S. Paulo, são dois exemplos bem acabados – e de sucesso recente – do gênero true crime no audiovisual brasileiro. O primeiro, dirigido por Guto Barra e Tatiana Issa, reconstitui o assassinato nos anos 1990 da atriz e filha da novelista Gloria Perez, no Rio de Janeiro. O segundo, narrado pelo jornalista Chico Felitti, revela a macabra história da moradora de um casarão caindo aos pedaços no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Ambos se caracterizam pela investigação e pela reconstrução de acontecimentos e crimes reais, muitas vezes misturando realidade e ficção na mesma narrativa. Onde começa essa obsessão por tragédias reais e como se explica o sucesso recente de tantos livros, filmes e podcasts como os citados acima?
A história da literatura americana é um bom ponto de partida para se traçar as origens do true crime. No século XVII, os sermões ministrados por pastores puritanos antes das execuções de infiéis eram transformados em livros contando os supostos crimes perpetrados por esses condenados à forca e muitas vezes suas confissões. Considerado por muitos críticos literários o primeiro romancista profissional dos Estados Unidos, Charles Brockden Brown (1771-1810) escreveu seu primeiro livro, Wieland, or The Transformation (1798), inspirado na história de um rapaz que assassinou a própria família, em Nova York. “Sempre houve um apetite por histórias de crimes reais, provavelmente antes mesmo de Gutemberg criar a impressão”, disse a VEJA o historiador americano Harold Schechter, autor de True Crime: A Anatomia dos Filmes (Darkside), um guia de filmes inspirados em fatos reais. “Sempre que um assassinato horrível acontecia, algum poeta o transformava em uma balada ou em um poema.”
Curioso é que, há cerca de dez anos ou mais, o true crime era considerado um tipo de subcultura de má reputação destinado a nichos. Schechter estreou nesse tipo de literatura em 1989, com The Shocking True Story of Ed Gein, the Original ‘Psycho’, sobre o assassino que inspirou os assassinos de filmes como Psicose (1960), O Massacre da Serra Elétrica (1974) e O Silêncio dos Inocentes (1991). Ele não conseguiu convencer sua editora, a gigante Simon & Schuster, a publicar o trabalho em capa dura – indicação de estatura literária do lançamento. Assim, acabou sendo lançado apenas no formato pocket book. “Porque eles pensaram que era um tipo de livro que só comprariam em uma banca de rodoviária ou algo assim”, contou. Esse mesmo trabalho ganhou uma versão em graphic novel, com desenhos de Eric Powell, que a Darkside lançou recentemente no Brasil.
Segundo Schechter, essa recente aura de respeitabilidade que envolve o gênero tem raízes no sucesso de dois trabalhos importantes. Um deles é o documentário da HBO The Jinx: The Life and Deaths of Robert Durst (2015), dirigido por Andrew Jarecki, sobre o bilionário envolvido no assassinato de três pessoas. O programa ajudou na condenação de Durst com uma confissão obtida num incrível golpe de sorte. No intervalo das entrevistas, o suspeito vai ao banheiro com o microfone ligado e divaga sobre seus crimes enquanto faz xixi. O outro é o podcast Serial, apresentado pela jornalista Sarah Koenig, que estreou em 2014. Com mais de trezentos milhões de downlods, começou com a história de Adnan Sayed, de 17 anos, acusado de matar a namorada, Hae Min Lee, de 18 anos, em Baltimore, no início de 1999. Também por causa do programa, o corpo da menina foi encontrado em um parque da cidade e o rapaz foi preso, julgado e condenado à prisão perpétua. “De alguma forma, esses dois trabalhos meio que ajudaram a dar o pontapé inicial nessa nova onda”, disse ele.
Apresentadoras do podcast Modus Operandi, especializado em true crime, Carol Moreira e Mabê Bonafé concordam com a avaliação de Schechter: Serial, que foi comprado recentemente pelo jornal New York Times, e The Jinx são referências importantes nessa nova encarnação do gênero. Mas não são as únicas. Autoras de um livro homônimo lançado recentemente pela editora Intrínseca, um guia para quem quer conhecer melhor esse estilo de produto cultural tão em voga, Carol e Mabê citam vários outros, como a série documental Making a Murderer, da Netflix, sobre o bizarro caso de Steven Avery, e o podcast americano My Favorite Murderer, apresentado por Karen Kilgariff e Georgia Hardstark. Sem falar em O Caso Evandro, de Ivan Mizanzuk, sobre o caso das “bruxas de Guaratuba”, que começou como podcast e terminou sendo adaptado para o formato de documentário pela Globoplay, sob direção de Aly Muritiba e Michelle Cevrand.
Modus Operandi – Guia de True Crime traz capítulos sobre serial killers, perfis criminais, sistema de justiça, polícia, investigação, casos arquivados e muitas curiosidades — por exemplo, o fato de que maioria do público que consome esses produtos é mulher, 85%. O resultado é uma compilação de tudo que as autoras pesquisaram e aprenderam ao longo de dois anos produzindo o programa, que já tem mais de 150 episódios, é seguido por 400 mil pessoas e registrou 20 milhões de downloads. Cada capítulo coloca em perspectiva casos recentes ou históricos, em papos que duram até quatro horas.
Mabê atribui a fascinação do público pelo true crime a duas coisas: “Quanto mais brutal o crime, mais as pessoas ficam curiosas. Como é impossível para eu fazer algo dessa natureza, quero entender como uma pessoa consegue, como é capaz”. Carol , que já foi jurada em tribunal no julgamento de um rapaz que matou o amigo com 40 facadas, diz que, normalmente, quem acompanha os crimes pela imprensa tem uma visão fragmentada do que aconteceu. “Nas produções de true crime, sejam documentários, filmes de ficção inspirados nos crimes ou mesmo os podcasts, esse retrato é mais completo e uniforme”, diz ela. As autoras ponderam no livro que o gênero é visto hoje como “infotenimento”, palavra que combina informação e entretenimento e se aplica a produtos culturais que unem um formato atraente à respeitabilidade da investigação. Com tantos casos de erros judiciais e injustiças cometidas por avaliações apressadas, esses programas, além de corrigirem malfeitos, são lições de como se deve buscar a verdade.