Beyoncé fez barulho ao lançar, em 2020, o musical Black Is King, escrito, dirigido e estrelado por ela para contar a história da população negra americana. Premiada, a peça despertou controvérsias devido ao figurino, composto em boa parte de tecidos com padrões de listras e manchas de animais. A antropóloga brasileira Lilia Schwarcz, estudiosa do racismo, foi cancelada na internet depois de escrever que o “filme errou ao glamorizar negritude com estampa de oncinha”. Veio a público pedir desculpa. Afinal, os trajes, assinados por Zerina Akers, tinham a intenção de trazer à superfície a ancestralidade negra e africana de Beyoncé e dos demais protagonistas. Não foi a primeira nem a última controvérsia do estilo conhecido como animal print. Febre nos anos 2000, ele já foi tachado de cafona, mas retorna, agora, às passarelas e aos tapetes vermelhos com verniz fashion.
Tigre, onça, leopardo, zebra e cobra dão as caras em roupas, sapatos e acessórios, como mostraram os desfiles recentes de Dior, Alaïa, Roberto Cavalli e Reinaldo Lourenço. As estampas de animais ainda dominaram o street style da Fashion Week de Milão. Nas redes sociais, virou trend topic: quase 500 milhões de visualizações da hashtag do movimento no Instagram, TikTok e afins. Mas, afinal, o que distingue um modelito elegante de uma roupa que, a boca miúda, será criticada como brega? “É o jeito de combinar as peças”, responde o stylist Dudu Farias, que veste a top model Renata Kuerten, adepta da tendência. O segredo para não escorregar na cafonice é manter o equilíbrio, aliando as estampas mais chamativas às roupas neutras, como o jeans — um dos looks preferidos da supermodelo Gigi Hadid —, usando peças únicas ou bolsas e sapatos com a padronagem animal coordenadas às vestimentas mais sóbrias.
Não é que a ousadia mereça ser deixada de lado. Nas últimas exibições, aliás, as estampas animalescas chegaram a ser harmonizadas com cores vibrantes como azul, amarelo e vermelho. “Só é preciso ter bom senso”, diz Farias. Entre fãs e detratores, o animal print é alvo de discussão há anos, o que está intrinsecamente ligado aos exageros. Entre o amor e o ódio, porém, o estilo vira e mexe reaparece por ser rico em heranças e significados, revitalizando as raízes do ser humano em tempos remotos, quando os povos ancestrais usavam pele animal para se proteger do frio e se camuflar na caça. Ao longo do tempo, ele passou a ser uma forma de expressão cultural e status social, surgindo como divisa de realezas. Na África, além da referência às autoridades, as estampas de animais marcam presença nas indumentárias de sacerdotes, sobretudo as padronagens dos felinos. Com o tempo — e a exploração colonial —, as peles exóticas tornaram-se artigo de luxo entre europeus e americanos, popularizando-se com o cinema e a moda. Coube a Christian Dior (1905-1957) ser o primeiro estilista a levar a estampa de onça para as passarelas em substituição às peles verdadeiras, em 1947. Antecipando-se à causa da defesa animal, o francês disse: “Se você é justo e doce, não use peles”.
Nos anos 1950, o animal print caiu em desuso com a pecha de vulgar popularizada pelas esculturais pin-ups. Mas bastou a atriz Jayne Mansfield (1933-1967) usar um biquíni de oncinha para a estampa consagrar-se novamente como objeto de desejo. O movimento ganhou força nas décadas seguintes justamente como expressão da campanha contra o uso de peles, vestindo gente como a ex-primeira-dama dos EUA Jackie Kennedy (1929-1994) e a estilista Diane von Furstenberg. Nos idos de 1970, por sua vez, foi canibalizado pela onda punk, com direito a lingeries à mostra como sinal de revolta. Contudo, a popularidade e a baixa qualidade das roupas comercializadas não permitiram que os ares de “cafona” se distanciassem dele.
Quem conseguiu reverter essa visão foi o estilista italiano Roberto Cavalli (1940-2024), que, na década de 1990, soltou os bichos e se consagrou como o pai do animal print. “Deus é o melhor designer, então comecei a copiá-lo quando percebi que peixes, serpentes e tigres tinham ‘vestidos’ fantásticos”, declarou. Bastou esse fino resgate para as estampas se eternizarem como um clássico pop, agradando a diferentes tribos, classes e bolsos — da alta-costura ao street wear. Quem é que vai lutar com as feras?
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892