Nos primórdios da humanidade, a família nasceu da necessidade de segurança, como forma de, juntos, pais e filhos terem mais chance de sobreviver aos perigos do ambiente hostil. Milênios depois da era dos mamutes, em um mundo onde os riscos são outros, mas ainda preocupantes — e potencializados pela onipresença da internet —, pai e mãe seguem compelidos a proteger suas crias dos predadores com as armas disponíveis. Entram em campo os aplicativos de controle, que documentam e informam, passo a passo, os movimentos da garotada tanto no universo digital quanto no físico, uma ferramenta cada vez mais usada planeta afora: pesquisa da Kaspersky, empresa de tecnologia que atua no ramo, mostra que 50% dos pais em dezenove países usam os apps de monitoramento, estando os brasileiros entre os maiores usuários. “Eles utilizam o GPS do smartphone para acompanhar os deslocamentos e funciona 24 horas por dia, mesmo que não esteja aberto”, explica Ronaldo Prass, especialista em ciência da computação.
É invasivo? É, sem dúvida. É justificável? Também. Faz parte do trabalho de quem tem filho menor de idade saber onde e como passa o dia essa pessoa que ainda depende da maturidade alheia para crescer e se tornar independente. Antecipando os perigos que sua filha poderia correr quando não estava a seu lado, a empresária Débora Creutzberg decidiu instalar um desses aplicativos no primeiro celular que deu à filha Sarah, quando ela completou 10 anos. Dois anos depois, atesta os benefícios da ferramenta. “Uso para ver por onde ela anda quando sai da escola e se os roteiros e horários batem quando vai ao cinema ou almoçar com alguma amiga. Não é só uma questão de controle, mas de segurança também”, diz.
Os apps de monitoramento viraram notícia em janeiro, quando um adolescente de 14 anos foi vítima de sequestro-relâmpago ao sair da escola em Santo André, no ABC paulista, e a polícia o achou graças à ferramenta. A violência, aliás, é a maior motivadora da adesão a tais aplicativos no Brasil — ao contrário da Europa, por exemplo, onde a grande alavanca é fiscalizar a navegação pela internet, e da Ásia, onde o foco dos pais está na divisão do tempo entre estudo e lazer. “Aqui as pessoas estão sempre atrás de formas inovadoras de construir uma sensação de segurança”, explica o antropólogo Lenin Pires. A adesão, de fato, só aumenta. A Qustodio, uma das maiores desenvolvedoras de aplicativos de monitoramento, diz que o número de usuários de seu produto no Brasil cresceu 40% no ano passado.
Apesar de a preocupação dos pais ser legítima, os especialistas alertam sobre o fato de que um excesso de vigilância pode acarretar problemas de relacionamento e levar os filhos — muito mais proficientes na internet do que seus velhos progenitores — a tomar providências para desafiar o controle. “A falta de autonomia na adolescência gera insegurança, medo, ansiedade e angústia”, observa Andréa Jotta, psicóloga da PUC-SP. A reação vem a jato — e não faltam trends do TikTok ensinando os jovens a burlar o sistema de localização e despistar os adultos. A administradora Lilian Peres, 45, mãe de Valentina, 15, e Tomas, 14, sente na pele a dificuldade de regular quem está na fase de descoberta do mundo. “Já aconteceu de eles desligarem o GPS para eu não ver onde estavam”, admite. “Tem coisas pessoais que não dá pra compartilhar com os pais”, rebate Valentina.
Para que o aplicativo efetivamente garanta a segurança dos filhos e tranquilize o coração dos pais é necessário que se estabeleça, antes de tudo, uma sólida relação de confiança e diálogo. O processo começa, necessariamente, pelo aviso prévio de que o app vai ser instalado — nunca, jamais, se deve fazê-lo em segredo. “O filho pode até reclamar, mas saber que os pais se importam faz com que, no fundo, se sinta protegido”, afirma a psicóloga Ceres Araujo. “O primordial é que não pense que sua privacidade está sendo invadida sem explicação”, completa. A farmacêutica Izabella Corsino, 39, teve uma longa conversa com João Pedro, 15, antes de baixar o Life360 no celular dele e acabaram chegando a um acordo. “Sempre falamos abertamente sobre sexo, drogas, todos os assuntos delicados. Ele sabe que pode contar comigo e não tem por que esconder nada”, garante Izabella, que dessa forma, mesmo longe, monitora de perto a ocupada rotina do filho. “Um dia ele se perdeu e o app sinalizou. Foi uma ajuda fundamental para eu poder indicar o caminho de casa”, lembra. Bem usados, esses aplicativos servem inclusive de guia para avaliar a hora certa de dar autonomia aos filhos. “Do zero aos 7 anos fazemos por eles, dos 7 aos 12, com eles, e depois disso afrouxamos o controle na esperança de que tenham aprendido o que ensinamos”, ensina Alessandra Borelli, especialista em educação digital. Lembrando que andar pelas próprias pernas implica em, por mais que isso doa aos pais, desinstalar algum dia o aplicativo.
Publicado em VEJA de 22 de junho de 2022, edição nº 2794