“A fotografia de rua funciona como uma cápsula do tempo”, diz Gustavo Minas
Um dos principais fotógrafos do país lança novo livro, 'Liquid Cities', por editora italiana e discute a beleza de registrar momentos do cotidiano
“As impressionantes fotos tiradas pelo fotógrafo de rua brasileiro Gustavo Minas falam de isolamento, alienação e insustentabilidade. Reflexos incorporados, fontes de luz dificilmente localizáveis e perspectivas irritantes transformam suas imagens em metáforas visuais fascinantes para a vida em ‘Liquid Cities’”. Com essas palavras, o trabalho de Gustavo Gomes, conhecido como Gustavo Minas, foi selecionado como finalista para o Leica Oskar Barnack Award de 2023, um dos mais importantes prêmios da fotografia. O brasileiro nascido em Cássia, pequena cidade de Minas Gerais, se tornou um dos grandes nomes da fotografia de rua nacional, reconhecido tanto no Brasil quanto no exterior.
A fotografia de rua é uma das vertentes mais fascinantes da fotografia. Trata da captura de registros cotidianos, interpretados pelo olhar de cada profissional. Teve um período de ouro, entre as décadas de 1960 e 1970, em que grandes mestres como Henri Cartier-Bresson (1908-2004), Garry Winogrand (1928-1984), Diane Arbus (1923-1971) e Joel Meyerowitz flanavam pelas cidades registrando momentos únicos. Mas ela continua sendo reinventada por novos fotógrafos como Gustavo Minas.
Seu primeiro livro, Maximum Shadow, Minimal Light, saiu pela editora austríaca Lammerhuber, especializada em fotografia, e reuniu 95 de suas melhores fotos, incluindo registros feitos como parte de seu projeto de longo prazo na rodoviária do Plano Piloto, em Brasília.
Agora, ele lança seu segundo trabalho, Liquid Cities, pelo selo italiano Eyeshot, dedicado à fotografia de rua. Cópias do livro podem ser compradas diretamente com o fotógrafo. A publicação é um desdobramento de uma exposição que fez em São Paulo em 2022, e é o mesmo indicado para o prêmio Leica Oskar Barnack.
Em entrevista exclusiva, Gustavo Minas fala sobre seu trabalho, o poder da fotografia como meio para captar o cotidiano e o papel das redes sociais na divulgação da fotografia.
Você está lançando seu segundo livro autoral, Liquid Cities. Como foi o processo de elaboração das imagens e de edição do livro?
No final de 2022 fiz uma exposição na Galeria Fiesp com curadoria de Rosely Nakagawa. Ela encontrou essa relação das minhas fotografias com o conceito de modernidade líquida de Zygmunt Bauman. A partir dos reflexos, ela propôs uma discussão do que é verdade e o que não é, sobre as relações fluidas. A exposição acabou em 2023 e a partir daí comecei a trabalhar de maneira a ampliar esse contexto. Nunca produzi pensando no conceito do Bauman. E a fotografia de rua não tem apenas esse propósito de documentar, mas a gente acaba captando um pouco do espírito do tempo. Conversei com o pessoal da Eyeshot, especializado em fotografia de rua, e decidimos fazer o livro. Selecionei 400 fotografias que tinham essa relação, os editores de lá me devolveram 250 e me ajudaram a dar um norte, e a partir daí fiz a seleção por mim, buscando uma coerência, trabalhando com dípticos, com imagens em página inteira. O livro saiu lá fora em setembro e agora estou fazendo o lançamento por aqui.
Como você vê a relação do Brasil com a fotografia de rua? Falta reconhecimento dessa vertente da fotografia por aqui?
Acho que tem vários aspectos. A fotografia de rua sempre teve uma tradição documental muito forte. Mas é quase um “patinho feio”, porque não falamos de miséria, por exemplo, nada muito excepcional. Nossa matéria-prima é a rua. E há uma certa dificuldade de entender qual o interesse de fotografar o banal. Lógico, o interesse tem crescido e hoje há uma cena vibrante. Mas lá fora há uma tradição muito mais antiga desde a época do Henri Cartier-Bresson. Há ainda outra barreira. A fotografia de rua tende a se valorizar com o passar do tempo. O Carlos Moreira, por exemplo, com quem estudei, teve exposições em vida, mas vejo ele sendo reconhecido muito mais depois que morreu, em 2020, no primeiro ano da pandemia. Com o passar do tempo, a fotografia de rua funciona como uma cápsula do tempo, mostrando como era a vida cotidiana em outra época. Há vários outros casos. A Vivian Maier, o Saul Leiter, todos foram redescobertos muito tempo depois.
E há um olhar pessoal de cada fotógrafo nessa interpretação do cotidiano.
Sim, sem dúvida. Um olhar mais poético, artístico. Sou jornalista de formação, mas busco uma experiência muito mais dramática. Tem o lado pessoal, que mostra o ponto de vista do fotógrafo. É um tipo de imagem que me interessa muito mais.
Você ficou conhecido pelo uso de reflexos como forma de criar composições mais complexas. Como você encontrou sua própria identidade?
Foi de maneira mais intuitiva. Quando me mudei para Brasília, comecei a fotografar a rodoviária do Plano Piloto, um local que tinha uma concentração interessante de pessoas. E as imagens que fiz lá me deram certa notoriedade, abriram o caminho para a publicação do meu primeiro livro. Mas esse trabalho mostra como sou muito guiado pela luz. Eu busco uma ficção visual. A minha matéria-prima é verdadeira, mas busco uma maneira de transformar aquilo em outra coisa. E o uso da luz, dos reflexos, ajuda muito. Porque mescla duas realidades paralelas. Dá para transformar duas coisas em uma terceira. Guiado pela luz, tento contar… Não digo mentiras, mas sugerir uma história que não necessariamente é o concreto, do dia-a-dia. É algo que flerta com o cinema, com esse processo de contar uma história.
Você percebe um interesse renovado pela fotografia?
Sim. A fotografia pode ser muito terapêutica. E ajudar a entender o ambiente em que se vive. Quando me mudei para São Paulo, passei a fotografar ativamente. Fui descobrindo os atalhos da cidade tendo a fotografia como companheira. Em São Paulo, estamos sempre tão estressados com o trabalho, com o ônibus, que a fotografia ajuda a dar uma relaxada. A sensação é de ter um pouco de controle em meio ao caos que está acontecendo ao redor. Você organiza esse caos ao construir uma imagem com planos legais, com harmonia e uma boa luz. E acho que muita gente faz fotografia de rua pensando nisso. Como uma saída criativa.
E o processo de usar uma câmera, e não apenas o celular, dá outra dimensão para essa experiência?
Tem coisas incríveis sendo feitas com celular. Mas a câmera te dá maior controle criativo. Ela ajuda nesse sentido. A pessoa começa a se aprofundar mais, toma decisões estéticas conscientes. E tem mais: a câmera é um objeto gostoso de segurar.
Muitos sentem medo de sair carregando uma câmera em uma cidade movimentada como São Paulo…
Sim, mas a fotografia de rua mostra que a cidade é menos insegura do que parece. Claro, São Paulo é perigosa, mas é possível de ser vivida. A fotografia te ensina a lidar com a cidade de forma mais fluida.
Como você definiria uma boa fotografia de rua?
Não tem uma receita única. Ela pode ser boa por ser minimalista, por ir direto ao ponto. As que eu gosto de fazer, por exemplo, tem certa ambiguidade. São aquelas que te fazem parar, seja folheando um livro ou olhando o Instagram. E isso pode acontecer por vários motivos. Pelo modo como o fotógrafo capturou a imagem, pela luz, por uma justaposição, por um reflexo. São imagens que têm vários pontos de interesse.
Além de fotografar, você tem se dedicado a dar palestras e workshops para ensinar algumas técnicas. Tem ainda dois cursos na plataforma Domestika. Como decidiu também transmitir um pouco desses conhecimentos adquiridos?
Começou bem devagar. Sou muito tímido, não gosto de ser o centro das atenções. Mas a troca com as pessoas é muito legal. Alguns me diziam que eu tinha inspirado a ver beleza no dia-a-dia. E isso é muito bom. Além disso, com os workshops consigo viajar, o que também é ótimo. Não consigo viver apenas da fotografia de rua, preciso de outro ganha-pão. E, na verdade, acho até saudável. Porque senão você fica na ansiedade de ter que vender, de ser comercial. Precisa ficar se vendendo o tempo inteiro, precisa virar um influenciador. E tem mais. Ver o trabalho dos alunos é muito inspirador. Às vezes, saímos juntos para fotografar e os alunos voltam com cada foto. São ideias mais frescas. Muitas vezes as fotos deles são melhores que as minhas (risos)! O período inicial de aprendizagem é muito cheio de energia. Depois, você acaba se engessando um pouco mais.
Você mencionou o Instagram. Acha que os algoritmos acabam tornando o trabalho mais pasteurizado, promovendo sempre os mesmos estilos de fotografia?
Posso dizer que foi saudável, para mim, começar antes do Instagram. Até existia o Flickr, mas não era o mesmo tipo de pressão. Não tinha essa gana por reconhecimento imediato. Agora, você acaba vendo, por exemplo, muitas imagens que são noventa por cento arquitetura, com uma pessoa ali, pequena, em silhueta. São imagens muito gráficas, e as pessoas vão ver aquilo e, como talvez não tenham estudado a história da fotografia de rua, vão perceber que essas imagens têm muitos likes. E achar que aquilo é bom. Acabam pegando as influências meio de segunda mão. Eu fiz um curso com o Carlos Moreira que tinha um ano de duração. A gente ficava vendo os fotolitos, digerindo as coisas aos poucos. Era outra relação.
E o papel das viagens no desenvolvimento da fotografia de rua?
Acho que tem dois lados nisso. Eu sempre digo que temos que aprender a trabalhar em casa. Você vai para esses lugares incríveis, como Marrocos, Cuba, e com certeza vai voltar com uns fotões, mas só vai arranhar a superfície. O trabalho mais profundo que fiz foi na rodoviária. Foram 10 anos fotografando lá. Eu adoro viajar, acho muito legal, mas não dá para ficar só nisso. É fundamental encontrar coisas para fotografar em casa. Como fotografar o mesmo lugar por 10 anos e ainda achar coisas novas para registrar? Esse é o desafio.
Quais equipamentos você usa?
Comecei fotografando com câmeras maiores, mas um ano depois conheci as Fuji e passei a fotografar com elas, que são menores. Hoje uso uma lente 40 mm, que não é tão aberta quanto a 35 mm, nem tão fechada quanto a 50 mm. Às vezes uso uma lente zoom, quando não consigo chegar tão perto. Depende muito da situação. E trocar lentes é importante para refrescar as ideias e o olhar.