Em frente ao espelho, é quase um tratado de sociologia: o ato de pintar o rosto acompanha o vaivém da civilização. O primeiro registro do que chamaríamos de maquiagem procede de desenhos egípcios de 3000 a.C., ao mostrar homens e mulheres com olhos delineados. Ao longo da história, os toques e retoques na face serviam como arma de diferenciação na sociedade. Hoje, ainda é assim. As cores que tingem lábios e maçãs do rosto representam um manifesto. E não há tom mais loquaz do que o vermelho e suas versões mais delicadas, até chegar a nuances bem claras. No pós-pandemia, o mundo sem máscaras, deu-se o renascimento escarlate em caras e bocas.
A preferência por essa escala cromática não é inédita. Na Grécia e na Roma antiga, decorar-se com tais matizes já fazia parte dos rituais de culto à beleza. Quem podia, porque era difícil de encontrar, coloria as têmporas com o rouge, tintura avermelhada obtida de raízes. Hábito retomado e prestigiado, tempos depois, por reis, rainhas e nobres nas cortes europeias do século XV em diante. Já os lábios bem vermelhos, ícones da sensualidade feminina, teriam sido invenção de Cleópatra, a monarca do Egito que espalhava sedução. Ela pintava a boca com uma mistura feita de besouros esmagados, ocre e carmim em pó — para ela, os fins justificavam os meios.
Não há dúvida, e basta olhar para o lado — o bom e velho batom vermelho é quem manda e desmanda. E há, nesse império, precedentes muito nítidos: basta lembrar das mulheres que pintaram os lábios para reivindicar o direito ao voto no fim do século XIX ou resgatar a autoestima depois da II Guerra Mundial. O mesmo bastonete que estampou lutas feministas foi símbolo de pecado e motivo de caça às bruxas, chegando a ser proibido pela Igreja Católica. Tanta história, é natural, faz dele um clássico. “A cor vermelha costuma ter um profundo impacto na mente do usuário e na do observador”, diz a psicóloga britânica Julia Robertson, autora de um estudo sobre as motivações e os efeitos psíquicos da maquiagem. Direto ao ponto: o batom que ajudou a construir o ar sexy de atrizes como Marilyn Monroe entre os anos 1920 e 1950 hoje representa conquista e glamour, atraindo flashes nos lábios de Lady Gaga no tapete vermelho do Oscar e nos de Rihanna no show do Super Bowl.
Contudo, como já não é possível viver em um mundo sem diversidade, trata-se de conviver democraticamente com cinquenta tons de vermelho. E com estardalhaço explodiu um outro estilo, não por acaso chamado de Barbiecore. Como sugere o nome, derivado da célebre boneca, trata-se de tingir o look de cor-de-rosa da cabeça aos pés, no vestuário e na maquiagem. Mas, em vez de partir para o pink, forte como ele só, a composição é suave, com predomínio do rosa-claro nos lábios, nos olhos e nas bochechas. O visual ganhou as redes e o mundo na pele de influenciadoras como Hailey Bieber, Zendaya e Dua Lipa, além da brasileira Larissa Manoela. Um dos apelos do Barbiecore é sua vocação democrática. “Esse tipo de beleza monocromática está em alta porque dá certo em todos os tons de pele”, diz Celso Kamura, cabeleireiro e maquiador de Angélica e Dilma Rousseff. A idade também não é obstáculo: estrelas mais maduras como Jennifer Lopez e Beyoncé seguem a proposta com elegância. Mulheres e homens de todo o mundo, uni-vos: viva o tempo encarnado.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2023, edição nº 2840