Era dramático saber qual o talher certo, mesmo em um jantar comum. “Comece da esquerda para a direita”, me explicou um amigo. De repente, eu errava, e serviam uma sopa, a colher no outro extremo, o que significava que eu tinha errado tudo. Nunca vou esquecer de uma vez em que fiquei para jantar na casa de um amigo. Lustre francês, mesa de madeira elegante, enfim, todo um cenário muito distante daquele a que eu estava acostumado. Todos sentaram-se à mesa, em ordem definida pela dona da casa. A funcionária entrou com uma bandeja de prata sobre a qual se via uma terrina fumegante. “Ah, hoje me dei bem”, pensei, lembrando-me dos bifinhos martelados ferozmente por minha mãe em casa. Qual seria aquele prato que na apresentação já era tão chique? Abriram a terrina e retiraram… espigas de milho cozidas.
Já contei essa história várias vezes, porque foi um trauma. Aquele ambiente tão luxuoso, aquela gente tão elegante jantava simples espigas de milho, semelhantes às que eu comia numa tarde, em casa, sem pompa. Havia um talher específico! Era formado por duas espécies de parafusos, que se devia atarraxar nas pontas das espigas. E depois mordê-las. Ah, sim, havia água morna com limão para lavar os dedos. Eu sempre associara luxo a fartura. Mas no caso era um luxo herdado e, chafurdando naquela decoração pomposa, comiam-se espigas de milho, chuchu e outros pratos mais plebeus. A culinária era o território vasto em que a etiqueta imperava. Cheguei, pasmem, a receber um talher para comer manga, no final de um jantar. Mais uma vez, atarraxava-se um parafuso no caroço, com um pino para manter a manga de pé. E cortava-se com garfo e faca. Obviamente, minha manga deslizou pela mesa até o colo da dona da casa. Alguém veio me auxiliar, e aquele jantar se tornou inesquecível — mas pelas razões erradas.
“O jeito de viver mudou. A grande descoberta da atualidade é não deixar que a etiqueta atrapalhe”
Hoje, porém, não importa o que pensem. Claro que não vou enfiar a mão na feijoada em busca das melhores partes. Mas batatinha frita, nem pensar com garfo e faca. A etiqueta se tornou mais flexível. No comer, tranquilamente. Mais ainda no vestir. Basta um pouco de bom senso, calça e camisa, e já estou pronto. Paletó com camiseta, o.k. Mulheres usam shorts com sapato de salto em ocasiões sociais — antes, eu só vira isso em inferninhos. Chinelo é aceito até em evento black-tie, a gravata quase sumiu e o cinto perdeu território para calças de elástico. Já se veem casais em acontecimentos formais nos quais ela vai de paetês e joias de ouro, e ele, de bermudão. No passado, muitas vezes a pessoa nem teria a entrada permitida. Hoje, os mais velhos estranham, mas os mais jovens nem se preocupam. Se estiver calor, vão de camiseta regata, fazendo par com garotas de bustiê.
O jeito de viver mudou e, com ele, a etiqueta, tal como a conhecemos, se esvaiu. As pessoas sentem-se mais livres. No Japão há quem saia à noite fantasiado, de máscara — eu vi. Ainda não chegamos a isso. Mas a moda é o grande território da liberdade, a comida também. A grande descoberta da atualidade é não deixar que a etiqueta atrapalhe.
Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2024, edição nº 2916