
Passei minha adolescência sob o governo militar. Lembro-me dos livros proibidos, uma lista enorme. Jogar livros no fogo tem sido uma atividade comum na humanidade. Há séculos já realizavam esse espetáculo. Os livros, ainda bem, resistiram. Não deixa de ser significativo que sejam vistos como perigosos, ainda nos dias de hoje. Queima de livros sempre esteve associada a governos autoritários. Mas de repente, agora, eu assisto espantado à queima por uma “boa causa”. Um conselho escolar na província de Ontário, no Canadá, destruiu livros considerados racistas. Entre as obras estavam romances, enciclopédias, histórias em quadrinhos. Para a fogueira foram Asterix, Tintin e até a popular Pocahontas. Cerca de trinta títulos foram queimados numa cerimônia de purificação. Um vídeo distribuído aos alunos falava “nós enterramos o racismo…”. Deu barulho, óbvio. A escola já está disposta a rever sua atitude.
A questão dos livros infantojuvenis tornou-se presente. Até porque são adotados como leitura complementar em escolas e passam pelo crivo dos educadores. Um livro infantojuvenil não precisa apenas ter uma boa história, mas contribuir para a formação. Vivemos a época do cancelamento de autores infantojuvenis. No Brasil temos o exemplo de Monteiro Lobato. Até recentemente, considerado o pai da nossa literatura infantojuvenil. Hoje, acusado de racismo. Eu mesmo, entre outros autores, fiz adaptações para eliminar o possível racismo. Mas professoras e educadores em geral há um bom tempo vêm retirando Lobato da lista de livros adotados para a sala de aula. Um menino negro que eu conheço ouviu de uma educadora:
— Se derem Lobato para você ler na escola, denuncie.
“Queimar as obras, cancelar os autores é deixar um buraco. Melhor entendê-los, saber quais eram suas ideias”
Mais recentemente, a editora Companhia das Letras decidiu retirar do mercado o livro Abecê da Liberdade, de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta. Já era editado há anos. Agora, explodiram as acusações de racismo — há uma cena em que as crianças transportadas no navio negreiro brincam felizes enquanto são levadas para serem vendidas.
Eu jamais defenderia certas visões de mundo. Inclusive alguns contos de fadas, na versão original, acho fortes demais. (Leiam Pele de Asno pra ver.) Mas esses livros fazem parte da história. Quando o pensamento, a visão de mundo, o gosto literário forem estudados, eles serão necessários. Apagar, apagar… Não se apaga uma ideia. Queimar os livros, cancelar os autores é deixar um buraco. A história é mais forte que isso. Melhor entendê-los, saber quais eram suas ideias, porque escreveram assim.
Toda atitude autoritária chama por outra. Não é possível que livros sejam queimados e que isso seja ok. Ou autores colocados numa fogueira imaginária, sob o tribunal da internet.
Eu defendo não esses autores, nem o que eles pensam. Mas o fato de serem frutos de sua época. Não se apaga nem se queima a história. Nós vamos precisar dela para entender o futuro, senão já o presente.
Tanto radicalismo me assusta. Começam botando autores infantojuvenis na fogueira. O que mais vem por aí?
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2021, edição nº 2758
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