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Walcyr Carrasco

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Como parei de fumar

Cada um tem uma força íntima, e alavancá-la depende de nós

Por Walcyr Carrasco Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h32 - Publicado em 17 out 2021, 08h00
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  • Nas últimas décadas, todas as madrugadas acendia meu charuto. Durante umas duas horas contemplava o vazio, apreciando a fumaça. Se viajava, antes me certificava de que o hotel tinha varanda, terraço. Sempre comentava que fumar me ajudava a refletir sobre a vida. De fato, era viciado. Pirava sem charuto. Cheguei a comprar uns horrendos, em banca de revista, do fumo mais inferior, para não passar sem. Mas… a vida tem reviravoltas. Há meses um médico comentou que eu tinha risco de enfisema pulmonar. Raciocinei: “É só um risco e, afinal de contas, ele é gastro!”. E acendi um charuto. Detalhe: sempre os de bitola larga, para o prazer durar mais. Mas há duas semanas fui a Portugal. Aviões e aeroportos proíbem espirais de fumaça. Preparei-me psicologicamente, viajei a noite inteira sem sentir falta. Eu realmente não andava bem de saúde, sempre cansado… Aquelas duas horas na madrugada às vezes eram cansativas. Ainda exausto da viagem, não fumei no dia seguinte. No terceiro, pensei: “Se suportei dois dias, mais um será fácil”. De um em um, não fumo há semanas.

    Sei que estou apresentando uma versão açucarada. Como se fosse facílimo. Não é. Imagino inclusive que cigarros são mais difíceis de largar que charutos. Passei a infância com meu pai tentando largar os dois maços por dia. Só parou mesmo quando ficou muito doente. Vários amigos e amigas tentam parar, não conseguem. É um dia de sofrimento, depois acendem “só mais um…”.

    “Todo mundo admira quem se livra de um vício. Vale a pena. Não só pela saúde, mas pelos elogios”

    Para mim, foi uma questão de determinação. É assim que tudo acontece na minha vida. Quando resolvo, voltar atrás seria uma espécie de derrota. Foi o que aconteceu com o charuto. Resolvi que não. Pronto, é não. Nem todo mundo é assim. Nunca tive talento para guru de autoajuda, não me transformarei em um agora. Mas garanto: cada um de nós tem uma força íntima. Alavancá-la é um processo que muda de pessoa para pessoa. A gente tem uma enorme capacidade de decisão, só às vezes não tem consciência disso. E não funciona para tudo. Há anos tento erguer as alavancas para gostar de malhar. Meu sonho é perder a barriga. Está muito mais difícil que o charuto. Hoje mesmo me levantei cheio de energia. Vontade de cuidar do meu shape. Botei roupa leve e tênis. Quando fui para fora… estava chovendo! Adiei a decisão. (Tenho esteira em casa, mas nem olhei para ela.) A desculpa é que desejava caminhar ao ar livre. Preciso focar. Como agora com o charuto.

    Sinto falta? Óbvio. Mas ganhei duas horas no dia. Voltei a ler, tenho visto filmes. Esses dias assisti a um com o Anthony Hopkins de exorcista. Em certo momento, ele mesmo é possuído pelas feras infernais e passa boa parte do filme fazendo caretas, gritando e lançando olhares de horror. Garanto: o charuto seria mais agradável. Mas é a vida! Continuo em frente. Nem que seja pelo orgulho de dizer em alto e bom som: parei de fumar. Descobri: todo mundo admira quem se livra de um vício. Vale a pena. Não só pela saúde, mas pelos elogios, que fortalecem o ego.

    Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2021, edição nº 2760

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