Último mês: Veja por apenas 4,00/mês

Vida de Imigrante

Por Edison Veiga Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Alegrias e agruras da maior diáspora brasileira da história, a partir do olhar de um entre os 5 milhões que formam o fenômeno.
Continua após publicidade

Demora

É preciso respeitar o tempo, ainda que não se possa conhecê-lo de verdade

Por Edison Veiga 3 out 2024, 07h01
  • Seguir materia Seguindo materia
  • No Cairo, torre do relógio mais antigo do Egito, cerca de 1840, é visto na Mesquita de Mohamed Ali Pasha
     (Amr Abdallah Dalsh/Reuters/VEJA)

    Demora para chegar, demora para voltar. Demora um pouquinho para ajustar biologia ao fuso, fuso à agenda, agenda à rotina nova. Demora ter rotina nova. Demora para aprender tudo outra vez: tirar documento, conseguir autorização, carimbar papéis. Demora ter um novo número de celular que não seja o de turista, que não seja o limitadíssimo e caro. Demora decorar o número — no meu caso, desisti.

    Demora para abrir conta em banco, demora para ter dinheiro que justifique ter conta em banco. Demora nadinha gastar este dinheiro. Demora pensar sob a lógica do dinheiro que não se chama mais real.

    Demora para conseguir casa, demora para se sentir em casa. Demora mudar de casa e mudar e mudar até encontrar a casa que será realmente a casa. Demora para aprender a língua no ouvir, demora um tanto mais ainda para aprender a língua no falar. Demora anos para encontrar a palavra certa, na hora certa, do jeito certo. Demora décadas para encontrar a palavra bonita, encaixar no verso perfeito, escorregar com jeito, assumir do idioma os trejeitos.

    Demora descobrir qual o melhor mercado, a melhor padaria, o cinema mais perto, a única academia, a livraria com estante internacional, o melhor bar. Demora saber qual é a melhor pedida no bar. Demora muito mais ter um amigo para conversar no bar.

    Demora para decorar o novo endereço, com CEP e tudo. Demora para casa e lar se reencontrarem e reentrelaçarem como sinônimos enamorados. Demora estar seguro no ir e vir, demora achar que já sabe o caminho dos lugares, demora mais ainda realmente saber o caminho dos lugares. Demora definir como naturais os lugares.

    Demora reconhecer o canto dos passarinhos, achar ladeando alguma rua a árvore mais fotogênica, entender a hora do pôr do sol. Demora saber para que lado fica o mar. Demora conhecer os nomes dos artistas, as músicas do cancioneiro, os poemas importantes, o hino nacional.

    Continua após a publicidade

    Demora saber em quem votar e contra quem torcer

    Demora para conseguir consulta médica, e antes demora para conseguir o cartão que dá acesso à demora de conseguir consulta médica. Demora para tirar nova carteira de motorista. Demora para aprender a ler as placas diferentes e demora para as entender completamente. Demora para conseguir direito a parcelar a compra de um carro. Demora.

    Demora saber em quem votar e contra quem torcer. Demora reconhecer os discursos perigosos entre alhos e bugalhos de outra língua e outra tradição. Demora também identificar os discursos que valem a pena.

    Demora olhar e não se espantar, não estranhar, não parecer um viajante admirador. Demora tornar natural o exótico, óbvio o extravagante, normal o extraordinário. Demora banalizar o que os olhos veem. Demora também um tanto grande banalizar o que o coração sente.

    Demora entender que saudade é coisa boa. Demora esquecer o sabor do pastel da feira de quinta-feira pertinho. Demora se acostumar com outro paladar, outro clima, outras intensidades. Demora aprender a se vestir no frio, a lidar com a neve, a saber que as quatro estações são distintas, definidas e definidoras. Demora assimilar que o tempo tem caráter. Demora entender que tomar sol é importante, essencial.

    Continua após a publicidade

    Demora conhecer o vizinho que vende ovo, o vizinho que entende de jardinagem e dá dicas sobre, o vizinho que vende leite, o vizinho que bisbilhota, o vizinho que gosta de festas, o que não gosta, o vizinho que palpita e o que se fecha, o vizinho que tem horta e de vez em quando dá um pé de alface. Demora sobretudo conhecer os vizinhos.

    Demora completar a reinvenção de si mesmo. Demora bastante de estrangeiro se confundir com o daqui, de gringo se fazer de louco local, de imigrante sentir raízes aprofundando-se cheias de ramificações, nuances, sentimentos e calosidades no solo antes alienígena agora autêntico, conforme, exato, sob medida.

    Demora, mas chega a hora em que pessoa e terra rimam, nefelibatas pés fincam histórias. Demora, mas chegada esta hora não tem mais embora.

    Siga o autor nas redes sociais:
    Facebook
    Instagram
    Threads
    BlueSky

    Publicidade
    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Veja e Vote.

    A síntese sempre atualizada de tudo que acontece nas Eleições 2024.

    OFERTA
    VEJA E VOTE

    Digital Veja e Vote
    Digital Veja e Vote

    Acesso ilimitado aos sites, apps, edições digitais e acervos de todas as marcas Abril

    1 Mês por 4,00

    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (equivalente a 12,50 por revista)

    a partir de 49,90/mês

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.