O isolamento imposto pela pandemia de Covid-19 desnudou sensações e angústias até então inéditas nas pessoas — e na sociedade. Aqueles que tiveram a possibilidade de permanecer em casa encontraram em seus lares novas versões de si e das coisas: essa foi a experiência da advogada Clarisse Escorel, que estreia na literatura com Depois da Chuva, coleção de crônicas escritas especialmente durante o período. Com textos curtos e aguçados, Clarisse descreve, por exemplo, o despertar para os sons ao seu redor — como a televisão estranhamente alta do vizinho, o latido agonizante de um cachorro já no fim da vida, e a rotina persistente da moradora do apartamento de cima, vertida em seu despertador pessoal.
Para além das peculiaridades — ora frugais, ora surpreendentes — do cotidiano pandêmico, Clarisse escreve sobre memórias de infância, família, saudade e autorreflexão, com prosa sensível acompanhada de humor perspicaz. Em capítulos como Gilda e O Avô, narra a admiração pelos avós, os acadêmicos e críticos literários Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza. A herança intelectual se une à veia artística da qual a advogada agora é também representante: seus pais são a designer Ana Luísa Escorel e o cineasta Eduardo Escorel. Em Blefe, aliás, exprime que se “fantasiava de advogada” por anos, trilhando um caminho distinto daquele que as raízes lhe sugeriam. Na orelha do livro, Ana Maria Machado, imortal da Academia Brasileira de Letras, dá as boas-vindas à autora e a elogia por, no garimpo de si mesma, não se deixar “arrastar a um tom confessional rasgado”, mesmo quando perpassa matérias biográficas. Um mergulho afiado num universo muito pessoal — mas, ainda assim, tão familiar a todos nós.