Chico Buarque já cantou que “os poetas, como os cegos, podem ver na escuridão”. Talvez seja numa penumbra que Carlos Cardoso enxergue os sentidos da existência humana. Em seu mais recente livro, Coragem (ed. Record), que lança nesta terça-feira, 17, na Livraria da Travessa de Ipanema, no Rio, ele se desnuda dos medos para, como diz a imortal Heloisa Buarque de Hollanda, utilizar-se dos versos como “técnica de sobrevivência”. Engenheiro de formação, Carlos recebeu a coluna em sua ampla sala com vista para a Lagoa Rodrigo de Freitas, para uma conversa sobre sua trajetória. Discreto, de fala mansa e olhar tímido, o poeta-engenheiro carioca revela a visão de mundo de quem, com coragem, tem se destacado na literatura contemporânea, conquistando prêmios – como o da Unesco na Jornada Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento entre os Povos e o Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de 2019.
Quando começou a escrever poesia? Esse interesse veio lá da infância, a entrada na adolescência, diria que uns 11 anos. Alguns dos poemas do Sol Descalço (de 2021) foram escritos aos 14. Mas é claro que a poesia não surgiu do nada, tive uma infância muito difícil. Tive pai alcoólatra, que me batia com certa regularidade. A minha forma de falar, já que não podia falar muito em casa, foi através da poesia. Por isso quando Helô (Buarque) diz que ela é visceral, realmente é. Ela sempre saiu muito de dentro. Sempre também com muito cuidado para não escrever algo que não tivesse força.
Quais foram suas primeiras referências na poesia? Na época eu não tinha muitos livros, me lembro que um amigo me deu um livro do Dylan Thomas, um do (Charles) Baudelaire e um do (T.S.) Eliot. Depois comprei um do Augusto dos Anjos. E tem uma coisa interessante, eu tinha um tio que era vizinho, ele ouvia músicas do Fagner. Mais tarde fui entender que aquelas músicas foram poesias de Florbela Espanca, do Ferreira Goulart, da Cecília Meireles. Até falei isso com Fagner, ele se emocionou, a gente ficou de fazer uma música juntos.
Com essa verve poética, por que fez engenharia? Estudava em uma escola pública, aquele sistema precário. E quando fui para faculdade, com 17 anos, lembro que passei para algumas (universidades) federais, mas não podia só estudar, tinha que trabalhar. Dava aula de informática no laboratório da faculdade, onde tinha feito o segundo grau técnico. Fui estudar engenharia porque uma pessoa me ajudou durante uns meses e disse: ‘pago sua faculdade, desde que seja engenharia’.
Por que Coragem como título do novo livro? É um livro muito forte para mim. Tentei passar a força que a gente busca para olhar para frente e tocar a vida. Todos esses movimentos da minha história de vida necessitaram de muita coragem.
Pode citar algo que te machucou de alguma maneira? Tive uma última relação de 11 anos, quase 12, de muito companheirismo. Mas houve um momento difícil, que se pediu um tempo… E esse tempo acabou virando uma separação de quase dois meses. E por incrível que pareça esse livro é dedicado para ela. Não acho que os casamentos devem terminar em guerra. Óbvio que num primeiro momento tem raiva, mas passa. Tem vários poemas dedicados a ela (Daniela Godoy), escritos para ela.
Ela os leu? Ela sempre leu os livros, tem até um poema que escrevi, datei e assinei e ela guarda aquilo com amor. Ela sempre foi muito presente, curtia muitas coisas, sempre lhe mostrava os poemas. Tenho certeza que esse livro é muito importante para ela. Mas é isso, hoje estou ‘solteiro no Rio de Janeiro’, como dizem.
Você lembra dos seus primeiros atos de coragem? Acho que a coragem vem desde de lá do quarto que fiquei escondido, com medo de ver o sol, com medo de ir para rua. Por incrível que pareça, tinha dificuldade de sair para tomar um sorvete, de sentar no restaurante, essa vergonha durou muitos anos da infância.
Como ficou esta relação paterna? Meu pai morreu com 56 anos, vítima de infarto. Levava ele no AA, mas ele não aceitava. Mas fiz o que pude com os recursos que tinha na época. Não sou de guardar raiva. Isso é uma coisa que aprendi: aprender a perder, que a vida não é mar de rosas.
Precisa de álcool para escrever? Não. Bebo uma taça de vinho, já estou alegre e pronto para dormir. E nunca fumei na vida. Não tenho rotina de escrita… Já escrevi muito poema em guardanapo de papel. Não tem horário, não tem dia, sinto ela vindo. O poema tem um processo como o vinho, de depuração.
O que há da engenharia na sua escrita? Meus poemas não tem nada de engenharia, tem outros movimentos. Não conseguiria escrever sobre engenharia, por exemplo. Porque esse outro lado é muito mais vivo. Nunca fui para o campo trabalhar como engenheiro, sempre fiquei nessa posição de gestor. E aí é onde precisa ter sensibilidade humana. A poesia talvez tenha sido a minha grande salvação. Sempre busquei o conhecimento, não me sinto uma pessoa vazia. Não sou nenhum intelectual, nem pretendo, mas sim produzir uma boa poesia, com muita humildade. Esse sempre foi meu lema.
Por que poesia é tão afastada do leitor brasileiro em geral? É falta de hábito. Às vezes tem muita hermetização do poema, as pessoas escrevem de uma forma difícil para o leitor. Passei por esse caminho. Em algum momento me veio: ‘tenho que escrever algo que não seja vazio, mas que consigam entender, que toque as pessoas’.
A poesia pode ser popular? É um processo difícil, a gente vive em um país que não investe na educação e cultura. Tenho visto muitas pessoas graduadas que sequer sabem escrever. E aí tem um pouco também da tecnologia, que tudo se resume a frases pequenas e não a cuidados de escrita.
Onde entra a poesia neste mundo tão caótico, entre mudanças climáticas e guerras sem solução a curto prazo? Não vou dizer que meus poemas são apolíticos. Alguns até estão bem posicionados, de forma sutil. Mas a voz dos poetas tem força, mesmo diante de guerras devastadoras. A gente vive essa violência aqui no Brasil, com relação à miséria e fome das crianças que moram em ruas. Ninguém nasce violento, com a arma na mão, não é assim. A poesia tem essa coisa de levar um pouco de humanidade, de sentimento, de fazer refletir e olhar diferente por alguma coisa.