Como com Bolsonaro, evangélicos viram grupo-chave para Trump
81% deles planejam votar no republicano, que enxergam como 'escolhido por Deus', na eleição de novembro. Conseguirá Kamala converter adeptos?
Um dos alicerces que sustentam as democracias liberais é a separação entre Igreja e Estado. O conceito, que revirou a ordem estabelecida, até então cimentada na interferência explícita da religião nos rumos das nações, ganhou força de lei na primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos, em 1791. Ali se estabeleceu uma espécie de muro para apartar duas das mais relevantes instituições das sociedades a favor da união de todos em torno da identidade nacional.
A engenhosidade do modelo fez com que ele se espalhasse por quase todo o Ocidente, inclusive o Brasil, onde a Constituição de 1891 estabeleceu nítida divisão entre fé e poder. Esse marco civilizatório, no entanto, ficou evidentemente ameaçado por aqui. Ao repetir à exaustão que Deus está “acima de todos”, o ex-presidente Jair Bolsonaro inflou o fervor com que o rebanho evangélico defende um governo regido pela intervenção divina e despertou um exército de influenciadores dispostos a tudo para apoiá-lo, inelegível e tudo. Representando, entre 27% e 31% do eleitorado, sempre que há eleições esse grupo pode ser decisivo.
Berço do que Thomas Jefferson chamou de “muro de separação entre Igreja e Estado”, os Estados Unidos trilham um caminho muito parecido. Embora cada vez mais americanos digam que não são religiosos, quase dois terços são cristãos, de acordo com o Public Religion Research Institute, uma organização sem fins lucrativos. Desses, 14% são evangélicos brancos. E a esmagadora maioria vota em Donald Trump.
“Escolhido por Deus”
De acordo com uma pesquisa do Pew Research Centre, 60% dos protestantes — incluindo 81% dos evangélicos brancos — planejam votar em Trump na eleição presidencial em novembro. Ciente da importância do grupo, o candidato republicano à Casa Branca passou a vender Bíblias temáticas de campanha e afirmou, em junho, que os evangélicos “não podem se dar ao luxo de ficar de fora” da eleição de 2024, implorando: “Votem, cristãos, por favor!”
Trump também elogiou uma lei recém aprovada na Louisiana, que exige que cartazes com os Dez Mandamentos sejam exibidos em todas as salas de aula de escolas públicas. “Alguém leu o ‘Não roubarás’? Quero dizer, alguém leu esse material incrível? É simplesmente incrível”, disse ele durante evento conservador da Faith & Freedom Coalition.
Até 2016, os evangélicos eram mais conhecidos pela fidelidade à Bíblia, valores familiares tradicionais e condenação severa de vícios como jogos de azar, promiscuidade sexual e avareza. Então surgiu Trump — um magnata, dono de cassinos, duas vezes divorciado e que chegou a se gabar de molestar mulheres. Não só: ele foi condenado por fraude financeira ligada a subornos a uma atriz pornô, com quem teria tido um caso no passado.
A explicação mais comum para esse apoio veemente é que os evangélicos fizeram um acordo faustiano em 2016 para votar nele, apesar de seu comportamento. Sabiam que ele não era cristão, mas apostavam que poderia dar-lhes o controle da Suprema Corte e criar condições para a reversão do direito ao aborto. Se assim for, a estratégia deu certo.
No entanto, há ideias muito maiores em ação. Assim como passou a dominar o Partido Republicano, Trump encanta um movimento cristão em cuja teologia e história ele demonstrou pouco interesse, mas permitiu dar vazão a um nacionalismo cristão desenfreado. Em igrejas onde bandeiras americanas substituíram cruzes, pastores entoam críticas ao “estado profundo”, conspiração espalhada pelo ex-presidente sobre um governo paralelo que desrespeita a ordem democrática, e os fiéis acreditam que ele foi “escolhido por Deus”.
Movimento antigo
Trump agora rivaliza com Jesus em lealdade, e não por acaso. A linguagem que ele escolhe usar está cheia de ecos de um movimento religioso americano muito ridicularizado, mas potente, com milhões de seguidores, conhecido por rótulos como “pensamento positivo” ou “evangelho da prosperidade”. Esse último rótulo assegura aos crentes que eles podem transcender a pobreza por meio de orações e dízimos à igreja.
O ponto de virada que fez o cristianismo permear de vez na política americana aconteceu há décadas, mais especificamente em 4 de julho de 1976. Naquele dia, Jerry Falwell, um pastor de televisão, proclamou para uma multidão de 25 mil pessoas que “o diabo” inventou a ideia de que política e religião não deveriam se misturar “para impedir que os cristãos governem seu próprio país”. Essa noção é o cerne do nacionalismo cristão americano.
O movimento de Falwell, conhecido como Moral Majority, desde então defende valores sociais conservadores e dá votos a candidatos republicanos, em especial aos mais de direita. Mas seu papel na ascensão política de Trump foi singular.
Nos últimos anos, em meio a uma onda de protestos antirracistas do movimento Black Lives Matter, aos lockdowns da Covid-19 que fecharam igrejas para impedir a propagação do vírus, o avanço de direitos de minorias LGBTQIA+ e das mulheres, entre outros acontecimentos da esfera progressista, os evangélicos passaram a sentir-se “sob cerco”, como escreve Tim Alberta no livro “O Reino, o Poder e a Glória”.
O diagnóstico de Alberta é claro: na sanha por poder, líderes pervertem os evangelhos e se aproveitam das ansiedades de seu rebanho, com consequências preocupantes para a política americana e a igreja.
Apoio inabalável?
Apesar da predominância de Trump, uma pequena e diversa coalizão de evangélicos está procurando afastar seus colegas crentes do rebanho republicano, oferecendo não apenas um candidato alternativo, mas uma visão diferente para sua fé como um todo.
Grupos de base como os Evangélicos por Harris estão em campanha ativa pela candidata democrata, publicando propaganda nas redes sociais e organizando grandes eventos online pelo Zoom. Apesar das diferenças políticas com a vice-presidente americana, eles argumentam que ela é a melhor escolha nesta eleição.
O reverendo Dwight McKissic, um pastor batista do Texas que participou do encontro por Zoom, disse que não vê “superioridade moral de um partido sobre o outro”, citando a resistência de Trump em prometer uma proibição nacional do aborto, e afirmou que a democrata tem um caráter mais defensável. E embora o pastor presbiteriano Lee Scott, também parte do Evangélicos por Harris, critique a postura pró-aborto da candidata, elogia sua “plataforma pró-família”, com políticas educacionais e promessas de expandir isenções fiscais para pais de crianças pequenas.
Com financiamento modesto em 2020, o grupo, anteriormente conhecido como Evangélicos por Biden, se concentra em tentar converter ao Partido Democrata eleitores evangélicos em estados indecisos. Nesta eleição, o pastor Jim Ball, presidente da organização, disse que a operação será expandida e contará com US$ 1 milhão em propagandas direcionadas. Embora o voto da maioria dos evangélicos brancos deva ir para Trump, nem todos eles estão decididos: de acordo com uma pesquisa recente do Pew Research Center, eles estão agora entre os grupos menos populares do país e muitos passaram a se identificar como “ex-vangélicos”. E, nesta disputa acirrada, cada voto conta.