Este blog nasceu de um par de correspondências recebidas em Tóquio por meu avô, Waldemar Zumbano, o Neno, treinador da equipe brasileira de boxe na Olimpíada de 1964. As cartas foram enviadas pela família, de São Paulo. Revelam os humores, o cotidiano e a política daquele tempo no Japão e no Brasil – e iluminam as transformações do mundo em mais de cinco décadas. Este capítulo, o penúltimo da série, tem um convidado especial.
De Max, o genro, na letra truncada, em uma das cartas: “Caro Waldemar. São 15 horas em São Paulo do dia 13. Em Tóquio, 3 horas da manhã do dia 14. O Fabre e o J.Henrique, e mesmo o Luiz Cesar, talvez estejam dormindo um sono reparador após suas – esperamos – vitórias. Não sabemos ainda dos resultados e a expectativa é incontida”. Fabre e Luiz Cesar foram derrotados na estreia. João Henrique por pouco deixou de tentar ao menos o pódio. Com o fuso horário e a dificuldade de comunicação imposta pela tecnologia incipiente – as chamadas telefônicas demoravam a ser completadas –, a espera era sinônimo daquele tempo mais lento, feito de ansiedade, sim, mas sem a pressa de hoje. As vitórias e as derrotas demoravam a atravessar os continentes. Entre a postagem da carta e o dia em que chegou às mãos do Neno em Tóquio, os pugilistas seriam eliminados. Coisa do esporte, é claro, mas nada que apagasse o turbilhão de qualquer Olimpíada, edifício construído de glórias e dramas. E, no entanto, mesmo os Jogos Olímpicos precisam de frescor, não se sustentam apenas com ouro, prata e bronze, gritos de alegria e choro de tristeza. Por isso, a cada edição, novos esportes são acrescentados ao calendário de disputas. Agora, em 2021, são o skate, o surfe, a escalada esportiva, o caratê e o beisebol. Em 1964, foram o judô e o vôlei – o primeiro esporte coletivo aberto a mulheres. O vôlei, como já sabemos, faria a fama de Valeska, a filha de Aída, a heroína do 1,74, personagem do episódio 3.
Naquele 13 de outubro de 1964, em que a carta saiu de São Paulo a caminho de Tóquio, o jornal Yomiuri publicou um texto de um jovem escritor de 29 anos costurado a partir das partidas de vôlei da equipe feminina japonesa, que levaria o ouro. Seu nome: Kenzaburo Oe, que mais tarde ganharia o prêmio Nobel de Literatura de 1994. O título: “Vida diária pós-tensão”. Há, na crônica, pinceladas do que Oe construiria em sua obra, “um mundo imaginário, onde a vida e o mito se condensam para formar uma imagem desconcertante da situação humana atual”, segundo a comissão julgadora da Academia Sueca.
A crônica de Oe, na tradução de Jefferson Teixeira:
“Acabo de assistir pela TV à partida de vôlei feminino entre o Japão e os Estados Unidos. As americanas têm no geral uma compleição grande, são bastante positivas, e parecem muito pragmáticas. Em comparação a elas, as moças do time japonês parecem de estatura muito mais baixa e deixam entrever uma espiritualidade negativa como se estivessem irritadas e tensas. Logicamente, nossas famosas feiticeiras orientais venceram o jogo (mesmo assim, não seriam feiticeiras de ar tristonho?) e o time de garotas americano, que conta com uma jogadora negra, aceitou sua derrota com real resignação. Foi um alívio por não causar nos corações dos espectadores um peso sufocante.
Nesses últimos anos até a Olimpíada, as meninas do time japonês vencedor devem ter sofrido com os grilhões das mais pesadas expectativas sobre elas. Os grilhões da visível expectativa nos olhos de todos, assemelhados às ataduras envoltas em seus joelhos. Talvez seja essa a razão do ar sombrio e vago no semblante dessas meninas na quadra. Apesar disso, ao definir uma fantástica cortada, a atacante abre um sorriso radiante bastante condizente com sua idade…
Com a proximidade da Olimpíada, os jornais e revistas nessas últimas semanas se impregnavam de um tom relativamente sufocante. Para aqueles que não se interessam nem um pouco pelos Jogos ou que conscientemente optaram por ignorá-los foi sem dúvida uma tensão realmente desagradável. Sou daqueles que têm um interesse bastante geral pelas Olimpíadas, mas, mesmo assim, fiquei de certa forma farto do jornalismo dessas últimas semanas. E, ao contrário, acredito que o jornalismo e a sensação de pressão por detrás dele foram ainda mais devastadores sobre os jovens atletas que efetivamente não enfrentam as competições olímpicas. Mas, em particular, em relação às feiticeiras orientais desse time de voleibol, entre outros.
Bem, a Olimpíada agora começa a avançar. A sufocante tensão prévia não existe. Nos campos e piscinas, apenas se repete o drama da tensão e catarse do esporte realmente verdadeiro, saudável e incisivo, com rapazes e moças de corpos esplêndidos em determinado instante o aumentando, para no instante seguinte destruí-lo. Felizmente esse não é o tipo de tensão que continua dia após dia e que causa rigidez nos ombros e enrijece o rosto.
Todavia, continuam a surgir novas vozes lamentosas, que se preocupam com a situação de letargia e vacuidade quando a Olimpíada terminar. Acredito, porém, que não é pelo fato de ter havido uma festividade que depois de ela ter passado a vida diária de uma sociedade necessariamente se esfacelará. Afinal, não se trata de uma guerra!
O preocupante é que o time de voleibol feminino e outros atletas que representam o Japão, sobre cujas costas foi colocado o mais pesado fardo das expectativas durante a tensão anormal anterior à Olimpíada, provavelmente continuarão realmente a carregá-lo por um longo tempo, vitoriosos ou derrotados, mesmo após encerradas as duas semanas dos Jogos.
Em particular, o que acontecerá se forem derrotados? Quando aquele extraordinário atleta Hironoshin Furuhashi perdeu, em 1952, espantou a todos o fato de nos jornais terem sido publicados os telegramas com as palavras provenientes de japoneses vivendo no exterior que exclamavam em prantos ‘Não culpem o Hiro!’. Também nesta Olimpíada, como se fosse algo a ser tratado realmente com tremenda relevância, serão buscados os culpados e as revistas provavelmente chegarão ao ponto de usar a vida pessoal dos atletas como material de escândalos. Será demasiado cruel se isso acontecer.
Gosto de ver as competições de atletismo de curta distância, mas, por exemplo, nos 100 metros masculino, todos os atletas que cruzam a linha de chegada quase formando uma única massa são lindos. Comparado ao atleta vitorioso, não há uma queda no fascínio pelos demais atletas que chegaram depois dele por uma diferença mínima. Também da maneira de todos eles se posicionarem após cruzar a linha de chegada depreende-se uma alegre harmonia, como se compartilhassem entre eles a honra de um primeiro lugar. Da mesma forma, também para os espectadores, essa cena representa saborear a mesma experiência de agradável tensão e seu relaxamento, não deixando desconforto posterior. Um espectador pertencente ao grande público como eu, independentemente de vitórias ou derrotas, sente que inúmeras partidas desse tipo, nas quais não resta desconforto posterior, constituem a quintessência do esporte.
Provavelmente para os jovens atletas esportivos qualquer jogo de uma grande competição deva ser algo assim muito árido. A expectativa exacerbada dos adultos denominados oficiais esportivos, do jornalismo e, antes de mais nada, dos espectadores pertencentes ao grande público como nós, deve estar transformando esses Jogos em importante evento carregado do desconforto de uma intensa rigidez nos ombros.
Espero que após o término da Olimpíada não haja empecilhos para os rapazes e as moças que despiram seus blazers e casacos olímpicos retornarem aos seus dias límpidos, luminosos e até certo ponto vazios como a límpida e vazia música-tema dos Jogos Olímpicos.
Totonto, Totonto…
Porque, obviamente, isso se chama ‘vida diária’ e é nela que se ocultam os vários jogos mais importantes”.