A pergunta de dez entre dez calls no mercado financeiro é “por que Lula escolheu Fernando Haddad como ministro da Fazenda?”. A resposta é simples, mas inconclusiva: Haddad foi selecionado por ter uma relação quase filial com Lula da Silva, num sentimento que combina lealdade, cumplicidade e admiração recíproca. Lula escolheu Haddad porque acredita que o futuro ministro será seu longa manus, alguém que vai tocar a economia do Brasil pensando no que o presidente faria se estivesse no seu lugar. Como no slogan da derrotada campanha de 2018, Haddad é Lula e Lula é Haddad.
Mas a resposta, embora correta, é simplificadora. Haddad não será Lula porque é obediente ao chefe, mas porque concorda com ele. Os dois tocam de ouvido. Assim como o presidente, Haddad acredita num estado de bem-estar social, parcerias público-privadas e a economia privada livre, mas regulada. É que academicamente se chamaria de neokeynesianismo, aquele autor que o atual ministro da Economia disse ter lido “três vezes na língua da rainha”, mas não entendido em nenhuma delas.
O político Haddad é uma invenção de Lula, que em 2012 tirou do colete o nome do então ministro da Educação para ser candidato a prefeito do PT por ele ter “esse jeito de tucano”. Chamado de “poste” de Lula, Haddad ganhou aquela eleição, perdeu a reeleição e, quando o ex-presidente foi preso, foi a terceira opção como herdeiro político (por motivos opostos, Ciro Gomes e Jaques Wagner recusaram ser o falso candidato a vice-presidente até o esgotamento de todos os recursos judiciais). Na campanha de 2018, Haddad reforçou a imagem de poste participando de um clip de TV com uma máscara de Lula. Esse tempo acabou. Haddad não é mais um poste.
Foi ele quem intermediou por cinco meses as conversas sigilosas de Lula e de Geraldo Alckmin para formar uma chapa entre os dois ex-adversários. Também foi ele que, no meio da campanha, ajudou a cicatrizar as mágoas que separavam Lula de sua ex-ministra Marina Silva. Foi Haddad quem trouxe para a campanha Lula o PSOL e convenceu Marcio França a um inédito acordo em São Paulo. Por fim, mas não menos importante, foi a campanha de Haddad a governador que fez Lula chegar a 45% dos votos no Estado de São Paulo, resultado decisivo para a vitória nacional. Aos olhos de Lula, Haddad deixou de ser um cumpridor de missões para ganhar tamanho como articulador e como político.
Esse novo patamar de Haddad aos olhos do presidente poderia leva-lo à Casa Civil, para coordenar as ações de governo, ou a um ministério vitrine para ser candidato à sucessão em 2026. Por que a Fazenda?
Como Haddad era candidato a governador, embora com chances pequenas de vitória, Lula pensou em outros nomes. Havia uma premissa: no seu governo não haveria um Posto Ipiranga, um ministro da Fazenda que assumiria a condução da economia e teria em suas mãos a credibilidade do governo. Isso nunca funcionaria com Lula. Como repete o ex-presidente, quem manda no governo é quem tem 60 milhões de votos. Por isso, Lula não permitiu ao longo da campanha que houvesse um porta-voz ou único interlocutor seu junto ao mercado. A rede de WhatsApp dos economistas que fizeram o programa de governo lulista, coordenado pela Fundação Perseu Abramo, tinha 101 nomes. É óbvio que quem tem 101 nomes, não tem nenhum.
Lula chegou a citar em conversas a possibilidade de chamar nomes fora do PT, como Henrique Meirelles e Luiz Carlos Trabuco, mas depois de eleito se concentrou em pouco nomes: na conversa com o governador da Bahia, Rui Costa, concluiu que era melhor tê-lo na Casa Civil; o senador Wellington Dias foi descartado pelos equívocos na condução da PEC da Transição e o deputado Alexandre Padilha terminou vítima do próprio sucesso. Sabendo que a opção estava entre Padilha e Haddad, vários banqueiros e empresários passaram a elogiar Padilha ostensivamente. Vários comparavam Padilha com o ex-ministro Antonio Palocci, que no primeiro governo Lula manteve uma política ortodoxo. O que para eles era um elogio, para Lula era um despautério, uma vez que Palocci virou uma ofensa depois que o ex-ministro fez uma delação premiada acusando Lula de corrupção.
Filho de um comerciante libanês, Haddad se formou advogado pela tradicional São Francisco da USP. Depois fez um mestrado em economia, no qual detalhava o fracasso da economia planejada soviética, o que era uma novidade na esquerda quando a URSS ainda existia. No doutorado em filosofia, ele contestava a visão de materialismo histórico de Jürgen Habermas. “O fato é que, se nos últimos anos passei a ser mais conhecido como homem público, no meu íntimo ainda me vejo como um professor”, escreveu Haddad na introdução do seu último livro “O Terceiro Excluído”, no qual debate biologia evolutiva, antropologia social e linguística sob a ótica da dialética hegeliana.
Ter um scholar como ministro da Fazenda não é novo. Delfim Netto assumiu o cargo no governo Costa e Silva tendo escrito uma tese referência sobre a crise do café, Mário Henrique Simonsen transformou a escola de economia da Fundação Getúlio Vargas na melhor do país e Fernando Henrique Cardoso era um sociólogo de padrão internacional. Que pistas isso nos dá sobre sua gestão como ministro?
No compasso ideológico é correto colocar Haddad como o mais à esquerda a ocupar o ministério da Fazenda. Ele de fato acredita no papel do Estado como indutor do crescimento, no estado de bem-estar social e na necessidade de regulações para garantir a competição no mercado. Na prática, ele será um ministro que vai enxergar Petrobras, BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal com peças de um projeto de governo, mas não um intervencionista na linha Dilma Rousseff. Como prefeito de São Paulo, Haddad pagou o seu mandato com a imposição da presidente e do seu antecessor Guido Mantega de congelar as passagens de ônibus de São Paulo logo no início do seu mandato, decisão que explodiu nas marchas de 2013. “Tentei argumentar que eles não teriam o resultado esperado, mas foram inflexíveis”, escreveu Haddad, na revista Piauí, anos depois.
Nos textos que escreveu enquanto colunista da Folha e em entrevistas, Haddad discorreu sobre platitudes como o “efeito multiplicador” do aumentos dos gastos públicos e a defesa do BNDES como indutor de projetos industriais, mas mesmo quando não precisava dizer, enfatizava regras fiscais. Como prefeito de São Paulo, ele reduziu em termos efetivos e renegociou a dívida municipal e conteve o crescimento da folha de salário de servidores. Na palestra que deu na Federação Brasileira dos Bancos como emissário de Lula, ele falou em “melhora da qualidade de gasto”, expressão que nunca se ouviu antes em um governo de esquerda.
Na primeira entrevista depois de nomeado, Haddad disse que sua prioridade será colocar para votar a proposta de reforma tributária já aprovada no Senado que cria um imposto único de consumo entre Estados e Municípios, criada pelo economista Bernardo Appy, em conjunto com a proposta apresentada pelo atual governo que taxa os dividendos e aumenta as alíquotas sobre lucros das empresas. Ele espera entregar no primeiro semestre a proposta de âncora fiscal substituta da atual Lei de Teto de Gastos, provavelmente uma combinação de relação dívida e PIB, controle de gastos e superávit primário.
A relação de Haddad com o mercado não será simples. Ao contrário de ministros anteriores, Haddad não tem a pretensão de querer agradar um interlocutor, o que reforça a imagem de arrogante que acompanha o futuro ministro. Esse estilo insolente e muito seguro de si desagrada a dez entre dez agentes do mercado, que passaram os últimos quatro anos achando que tinham em Paulo Guedes “um dos seus”. Haddad nunca será um amigo do mercado. Mas é inteligente o suficiente para saber que também não pode ser inimigo.
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Em 2018, lancei um livro sobre a delicada relação entre o ministro da Fazenda e o presidente. Foram dois anos de pesquisas e entrevistas com 14 ex-ministros para concluir que o cargo merece o título do livro, “O Pior Emprego do Mundo” (Editora Planeta). “(a relação entre o presidente e seu ministro) É um equilíbrio sensível. O presidente de um país cuja economia vive crises sucessivas, como o Brasil, precisa de um ministro da Fazenda respeitável como um rei de um país sob risco de invasão necessita de um general corajoso. Ao mesmo tempo, ao conceder ao ministro os instrumentos e o mandato para agir, o presidente está aviltando o seu próprio poder. Das características singulares do presidencialismo brasileiro, uma das mais delicadas é a relação entre o chefe do Executivo e o ministro da Fazenda. Emílio Médici está para Delfim Netto assim como Ernesto Geisel estava para Mário Henrique Simonsen. Itamar Franco só entrou para a História ao nomear Fernando Henrique como ministro e este, quando presidente, demitiu amigos de longa data para manter intacta a autoridade de Pedro Malan na política econômica (…).
Um ministro da Fazenda se ocupa de dezenas de índices mensais. São os indicadores de inflação, o preço da cesta básica, os números de desemprego, a variação dos indicadores de confiança do empresariado e do consumidor, o risco-Brasil, a taxa de juros da Selic, a volatilidade do câmbio… O presidente da República, por sua vez, só se preocupa com um índice: o da sua popularidade”
Nenhum presidente de empresa privada acumula tanto poder, controla tantos destinos, atrai tanta inveja. Nenhum outro posto da administração pública sofre tanta pressão, recebe tanto escrutínio, é alvo de tantos ataques. Nenhum emprego tem, simultaneamente, tamanha força e fragilidade. É o pior emprego do mundo”.