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Thomas Traumann é jornalista e consultor de risco político. Foi ministro de Comunicação Social e autor dos livros 'O Pior Emprego do Mundo' (sobre ministros da Fazenda) e 'Biografia do Abismo' (sobre polarização política, em parceria com Felipe Nunes)
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Os dois Moros das memórias de Sergio Moro

Escrito para ajudar na campanha, autobiografia mostra segurança sobre condenações a Lula e ingenuidade na relação com Bolsonaro

Por Thomas Traumann Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 10 dez 2021, 16h50 - Publicado em 3 dez 2021, 15h54

A maior surpresa do livro de memórias do ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro e ex-juiz Sergio Moro está na página 250, quando pela primeira e única vez o autor cita o nome do ex-procurador da República Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Operação Lava Jato. Desde o início da Lava Jato, em 2014, até o seu final, em 2018, Moro e Dallagnol foram os rostos e as almas da operação que descobriu um esquema bilionário de corrupção na Petrobras, prendeu dezenas de políticos e empresários, implodiu o sistema partidário, levou milhões às ruas e gerou a comoção nacional que permitiu a eleição de Jair Bolsonaro.

Ao recontar no livro “Contra o Sistema da Corrupção” a sua versão da história, Moro toma para si os méritos das reações populares da operação _ que ele define como “energia cívica” _ e cita o ex-parceiro apenas num momento negativo, quando o site The Intercept Brasil inicia a série de reportagens sobre a troca de mensagens entre os procuradores ao longo da operação (outros veículos, incluindo VEJA, participaram da cobertura).

A exclusão de Dallagnol da trajetória de Moro diz muito sobre o livro, lançado duas semanas depois de o ex-ministro e ex-juiz se filiar ao partido Podemos e se lançar candidato a presidente. Assim, o ex-juiz não dá lugar para disputa de protagonismo e se exime dos métodos do vale-tudo dos procuradores.

O Sergio Moro segundo o próprio Sergio Moro é um homem comum com uma causa extraordinária, o de fazer todos cumprirem a lei. Essa prerrogativa simples vai construindo o personagem que inicia a carreira como juiz no interior do Paraná e Santa Catarina, participa de uma operação grandiosa envolvendo doleiros, interroga traficantes, estuda direito americano e quando recebe as informações sobre lavagem de dinheiro através de um posto de combustíveis em Brasília vira o homem certo, na hora certa.

A Lava Jato apresentada pelo livro é imune à erros. Não há citações aos diálogos constrangedores entre os procuradores, o famoso powerpoint de Dellagnol e o suicídio do ex-reitor Luiz Carlos Cancellier. O grampo ilegal no escritório de advocacia do ex-presidente Lula da Silva é minimizado como um “erro”, a divulgação da conversa da ex-presidente Dilma Rousseff foi “justificável” e todas as decisões do STF que contrariam as de Moro descartadas como “injustas”.

O ex-juiz reescreve a Lava Jato com recortes seletivos das reportagens sobre o vazamento de suas conversas com os procuradores e insinua que os votos dos sete ministros do Supremo Tribunal Federal que o consideram parcial no julgamento de Lula “tiveram o efeito prático de minar o combate à corrupção”. No Estado de Direito de Sergio Moro, só as suas decisões merecem respeito.

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Enquanto nos capítulos dedicados à Lava Jato Moro é assertivo, o juiz que aceita ser ministro da Justiça do governo Bolsonaro toma outra persona. Sai o herói e entra um novo personagem, ora ingênuo, ora apenas ignorante de como funciona o poder. Candidamente, Moro conta durante que o segundo turno das eleições de 2018 um amigo intermediou um jantar com Paulo Guedes, à época assessor econômico de Jair Bolsonaro.

Na noite de 23 de outubro, a terça-feira anterior à eleição, Moro, Guedes e dois amigos dividiram um churrasco, em Curitiba. “Durante aquele churrasco, que avançou madrugada adentro, sinalizei a Paulo Guedes que, se Jair Bolsonaro fosse eleito presidente, eu aceitaria o desafio”, escreveu. Foi Moro quem fez o primeiro gesto e ligou para Bolsonaro. “Eu havia obtido o número do telefone dele e ligamos, eu e minha esposa, para cumprimentá-lo. Foi uma conversa rápida, até porque ele estava no meio das comemorações da vitória. Já no dia seguinte, como presidente eleito, ele disse publicamente que me convidaria para integrar o governo como Ministro da Justiça”, conta.

Para explicar ao leitor como aceitou ser ministro de Bolsonaro, Moro se esconde em justificativas que variam entre pueris e o nonsense:

“Se no período eleitoral, quando o candidato é submetido a severo escrutínio pelos adversários e pela imprensa, nada de mais significativo havia aparecido, a minha impressão era de que a declaração de Bolsonaro de que seria firme na luta contra a corrupção soava honesta e crível”.

“Como deputado, Jair Bolsonaro tinha dado dezenas de declarações agressivas contra as mulheres, homofóbicas e autoritárias, com enaltecimento dos excessos do regime militar, incluindo a homenagem feita, durante a votação do impeachment da Presidente Dilma Rousseff, ao coronel Brilhante Ustra, acusado de torturar adversários políticos do regime. Admito que participar de governo cujo presidente era responsável por declarações desse tipo era controverso. Mas, durante a campanha eleitoral, minha avaliação era de que ele havia moderado o tom”.

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Moro aceitou ser ministro em 1.o de novembro de 2018. Cinco dias depois a Polícia Federal desencadeou a operação que comprovou que parte do salário dos servidores do gabinete da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro do então deputado Flavio Bolsonaro era devolvido para Fabrício Queiroz, amigo da família havia décadas. No livro, o novo ministro da Justiça demora a compreender que o presidente interferiria nas investigações, apegado a uma promessa de “carta branca” que teria recebido do presidente.

Apenas em 22 de janeiro de 2020, com um ano de Brasília, é que o então ministro descobre a verdade, ao ler redes sociais que Bolsonaro cogitava retirar os assuntos da segurança pública do Ministério da Justiça. “Concluí que ele simplesmente não confiava em mim e não desejava a minha presença no governo”, escreve.

Moro descreve como tentou permanecer no cargo. Engoliu a decisão do presidente de não vetar pontos do projeto de reforma do código criminal aprovados pelo Congresso, perdeu o controle do Coaf (o órgão que fiscaliza transferências bancárias suspeitas) e aceitou a ordem de Bolsonaro para, sem nenhum justificativa republicana, trocar o diretor da Polícia Federal. Até a noite anterior à sua demissão, em 24 de abril de 2020, o ministro ainda lutava para colocar um indicado seu e, assim, manter as aparências de que ainda controlava a Polícia Federal. Saiu do cargo escorraçado.

“É fácil concluir que eu errei. Naquela época, no entanto, o conhecimento do futuro não estava à disposição. Sabedoria retrospectiva não vale. O que eu tinha, naquele contexto de esperanças que antecedia a posse de Bolsonaro, era a oportunidade de servir ao meu país como ministro e implementar as reformas necessárias para que avançássemos no combate à corrupção e a outros crimes”, escreve no único mea-culpa de todo o livro.

A ambivalência entre o Sergio Moro forte da Lava Jato e o Sergio Moro derrotado do Ministério da Justiça marca do livro de memórias e é o ponto de partida da sua candidatura presidencial. O roteiro de sessões de autógrafos de “Contra o sistema…” marca o início da campanha na qual Moro pretende convencer o eleitor de que apenas a sua eleição poderá completar o combate à corrupção iniciado na Lava Jato. Embora tenha qualidades literárias limitadas, o livro é uma excelente peça de propaganda. A evolução linear traçada no livro faz do ex-juiz e ex-ministro um personagem predestinado, puro em suas intenções, firme e justo em suas sentenças, enganado quanto tentava fazer o certo, injustiçado e que, agora, retorna para concluir o que começou. O Moro de “Contra o Sistema da Corrupção” não é apenas um candidato a presidente, mas a santo.

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