O “General em seu Labirinto” é uma obra menor do prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Marques e conta os últimos dias de Simon Bolívar, o comandante das guerras pela independência na América espanhola. Tuberculoso, o general tenta enganar os rumores da sua morte aparecendo em bailes, mas com o tempo assimila a decadência de seu corpo, das suas economias e da sua reputação. Antes um herói, passa a ser visto como um tirano. Tentando deixar a Venezuela e da morte, o general revê os povoados ribeirinhos, com suas filas de mulheres de preto, enlutadas pelas soldados que não voltaram. Seu irmão dizia que Bolívar nunca teve filhos, mas era o pai de todas as viúvas da nação.
O general Luiz Ramos não teve as glorias militares de Simon Bolívar, mas comandou as tropas brasileiras na mais intrincada operação desde a debandada com o desastre do governo Figueiredo, em 1985. Ramos é o comandante de facto da ocupação militar do governo Bolsonaro.
Quando o presidente Jair Bolsonaro defenestrou o general Santos Cruz da Secretaria de Governo, em junho de 2019, a sua relação com o Exército estava desencaminhada. Olavo de Carvalho xingava os militares, enquanto Carlos Bolsonaro semeava teorias de conspiração na qual o pai terminaria derrubado para dar lugar ao general Hamilton Mourão. Comandante Militar do Sudeste, com tropa de 20 mil homens, Ramos poderia facilmente declinar o convite de Bolsonaro para ser o novo ministro.
Não só aceitou, como convenceu os seus superiores no Ministério da Defesa e no Comando do Exército de que aquela era a oportunidade única para as Forças Armadas compartilharem o poder como nunca antes na democracia. Amigo de Bolsonaro desde 1973, quando ambos entraram na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, o general Ramos sabia que o presidente fora eleito com a agenda difusa misturando armamentismo, antiesquerdismo e conservadorismo moral, mas não tinha uma espinha dorsal capaz de transformar essas ideias em um governo. Como Ramos a frente, o Exército seria o eixo do governo.
Boa praça, perspicaz, bem informado, o general Ramos virou fonte de nove de dez bons jornalistas de política, fazendo brotar o conceito de os militares representam a ala sã do governo Bolsonaro, em oposição aos ideológicos como Olavo Carvalho, Abraham Weintraub e Ernesto Araújo. Foi Ramos quem reassentou as pontes de Bolsonaro com o Congresso, abrindo cargos para o Centrão e garantindo um mínimo de governabilidade para o governo.
Sob alguns aspectos, a estratégia de Ramos deu certo. O Exército passou a ser base de sustentação do bolsonarismo, enquanto avançava sobre a máquina público, corrigindo distorções históricas e arrebanhando vantagens particulares. O Congresso Nacional aprovou uma reforma nas pensões militares de que de reforma só tem o nome, é uma reestruturação da carreira que vai custar aos cofres públicos R$15 bilhões em dez anos. Em 2020, pela primeira vez, houve a proibição explícita no orçamento da União para bloqueios de verbas militares, privilégio que será mantido em 2021.
O número de militares empregados pelo governo Bolsonaro tornou-se o maior da história. Relatório do Tribunal de Contas da União revelou que 8.450 militares da ativa e da reserva ocupam cargos de natureza civil neste governo, sendo 4.451 do Exército. Para o ano que vem, o Ministério da Defesa pretende criar uma gratificação especial para militares, nas quais eles podem acumular integralmente o soldo com o adicional da função civil, vantagem inexistente para os demais servidores.
Em compensação, Bolsonaro pode tomar emprestado o prestígio e o poder dissuasório das Forças Armadas. Quando o presidente viu cerceado pelo Supremo Tribunal Federal, foi apoiado por notas oficiais de ministro generais como Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Fernando Azevedo e Silva (Defesa). A possibilidade de uma intervenção do Exército sobre o STF foi levada a sério até a prisão de Fabrício Queiroz causar um rombo na imagem do presidente junto às tropas. Mesmo assim, a simbiose segue afastando a possibilidade de impeachment. Para o eleitor comum, Bolsonaro e o Exército brasileiro são uma figura só.
Os fatos, esses bichos teimosos, mostraram que a estratégia do general Ramos era otimista demais. Ao assumir todas as funções possíveis do governo, o Exército terminou com dois impasses insolúveis, o controle das queimadas na Amazônia e a gestão de combate ao Covid19.
No primeiro caso, o general Hamilton Mourão tenta reconstruir tudo o que tenebroso ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, destruiu: a fiscalização do Ibama, o orçamento do ICMBIO, os acordos com a Noruega e União Europeia, o diálogo com ONGs e o respeito internacional. É factível reduzir drasticamente o desmatamento da Amazônia. Isso já foi feito antes, mas hoje a ação militar é limitada porque os verdadeiros interesses de Bolsonaro na Amazônia são a defesa de garimpeiros e grileiros.
No caso do coronavírus, o desastre é o maior do mundo. O general Eduardo Pazuello assumiu interinamente o Ministério da Saúde quando o vírus havia tirado a vida de 14 mil brasileiros. Dois meses depois, já são 80 mil mortos. Pazuello encheu o Ministério de oficiais que sabem tanto de epidemiologia quando doenças de epiderme, tentou manipular a divulgação dos dados de mortos e gerencia a pandemia mais letal da nossa história com ignorância científica e descoordenação com Estados e Municípios. Embora não sirva de perdão para a catástrofe, é preciso apontar que também neste caso a ação militar é direcionada pelo presidente, o líder que nega a ciência, boicota a quarenta, sabota ministros, minimiza o sofrimento alheio e faz propaganda de remédio de empresário amigo.
Assim como o Bolívar do livro de García Marques, o general Luiz Ramos está encurralado em um labirinto. Ele levou o Exército a tomar posições que contradizem a postura legalista das Forças Armadas desde Sarney, incentivou a ocupação de cargos por profissionais sem competência específica e gerou uma bomba de efeito retardado para quando os militares tiverem de deixar o governo. Os generais que eram figuras respeitadas na sociedade viraram motivo de troça. Como alertou o ministro do STF Gilmar Mendes, não é improvável que alguns terminem processados em tribunais internacionais pelo descaso com os brasileiros vítimas de Covid-19.
Para comparar: nos cinco anos da Guerra do Paraguai (1864-70), estima-se que 50 mil brasileiros perderam a vida. Na gestão da Covid-19, em dois meses o Exército brasileiro tornou-se corresponsável pela morte de 66 mil brasileiros, um número que só tende a crescer. Como o general perdido em seu labirinto, Luiz Ramos está se tornando o pai de milhares de viúvas da nação.
Eventualmente, o governo Bolsonaro irá acabar e os militares deixarão os postos civis, assim como fizeram no desembarque do governo Figueiredo para a democracia. À época, saíram envergonhados pela repressão política, inflação de 200% ao ano e dívida externa impagável. Foram trinta longos anos para as Forças Armadas formarem uma geração de oficiais comprometidos com o Estado Democrático de Direito. A incorporação do Exército ao governo Bolsonaro, coloca em risco esse avanço histórico.