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Thomas Traumann é jornalista e consultor de risco político. Foi ministro de Comunicação Social e autor dos livros 'O Pior Emprego do Mundo' (sobre ministros da Fazenda) e 'Biografia do Abismo' (sobre polarização política, em parceria com Felipe Nunes)
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Não é só a economia, estúpido!

Para estudioso da direita radical, chave do governo Lula é mostrar à oposição que o 8 de janeiro foi uma fronteira que não poderia ser cruzada

Por Thomas Traumann Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 25 abr 2023, 16h11 - Publicado em 25 abr 2023, 16h09

Professor da Universidade Diego Portales, de Santiago, o cientista político chileno Cristóbal Rovira Kaltwasser é um dos principais especialistas no estudo sobre a direita radical populista. Coautor com o cientista político holandês Cas Modde do clássico “Populism _ A Very Short Introduction” e um dos organizadores do “The Oxford Handbook of Populism”, Rovira acredita que o ressurgimento da direita radical desloca a economia como principal razão na decisão do voto e, no limite, é uma ameaça real à democracia em países altamente polarizados como o Brasil e os EUA.

Nesta entrevista, realizada após uma conferência no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ), Rovira argumenta que as questões culturais se tornaram tão ou mais importantes que a economia no hora do eleitor votar e que é fundamental ao governo Lula mostrar aos partidos de oposição que a tentativa de golpe no 8 de janeiro foi uma fronteira que não poderia ter sido cruzada. “A estabilidade da democracia depende que a elite política no governo e elite política na oposição compreendam que de suas atitudes dependem a continuação do regime democrático no longo prazo. A chave é o governo construir pontes com as versões mais moderadas da oposição para tentar incorporá-los”, afirma.

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VEJA – Quanto o Brexit venceu o plebiscito no Reino Unido em 2015 e Donald Trump foi eleito presidente dos EUA, muitos artigos apontavam que o avanço da extrema direita era consequência da crise econômico. O senhor publicamente discorda desta tese. Por quê?

Cristóbal Rovira Kaltwasser – No caso da Europa, esse argumento se baseia na ideia de que os eleitores dos partidos sociais-democratas mudaram de lado e passaram a votar na extrema-direita. Só que isso não aconteceu. A social-democracia tem culpa em muitas coisas, mas não no surgimento da ultradireita.

Dados empíricos mostram que a maioria dos atuais eleitores da ultradireita não são pessoas que votavam antes na social-democracia, mas aqueles que estavam com direita convencional. A extrema-direita tomou o lugar desta direita convencional e isso explica em grande medida a decadência dos partidos democratas cristãos europeus.

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A direita está se dividindo em dois segmentos: um que segue respeitando as regras da democracia liberal, como a CDU de Angela Merkel na Alemanha, e outro os partidos ultrarradicais, como o também alemão Afd (neofascista). Esta questão está empiricamente bem demostrada.

O segundo ponto é que tanto na Europa e quanto nos EUA quem vota na extrema-direita não são os eleitores mais pobres, isso quando os mais pobres votam. Na França, por exemplo, o voto no (populista de esquerda) Jean-Luc Mèlechon é de pessoas bem mais pobres do que os que votam (na populista de extrema-direita) Marine Le Pen. Os eleitores da extrema direita estão mais bem integrados no sistema econômico.

VEJA – Mas a economia segue tendo influencia?

Rovira – A crise econômica importa porque ela gera a transformação do status socioeconômico do eleitor, na forma como ele subjetivamente se enxerga na sociedade. Um operário que antes se achava parte da classe média baixa, hoje se sente mais abaixo, mesmo que objetivamente não esteja mal economicamente. A percepção desse status é uma questão mais subjetiva do que objetiva. O eleitor segue tendo acesso à saúde, educação, mas subjetivamente se sente como se tivesse sido deslocado para baixo e esta sensação de “perdedor da globalização” é usada com maestria pelos partidos de extrema-direita.

VEJA – E a famosa frase do marqueteiro James Carville “é a economia, estúpido” para explicar a importância do bolso na hora do voto?

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Rovira – Não é só a economia. É muito mais uma transformação cultural. Em geral, as forças de ultradireita são masculinas, seus líderes em geral são homens machistas e seu eleitorado é formado mais por homens do que por mulheres, o que se relaciona com essas transformações culturais. A ultradireita quer retornar a um status quo onde os homens tinham um lugar mais central na sociedade, um período em que eles poderiam fazer e dizer as coisas que hoje não são mais aceitas socialmente.

VEJA – Qual a influência do backlash cultural, a reação da direita à agenda de comportamento e direitos das minorias?

Rovira – Os novos partidos de esquerda europeus, notadamente os Verdes, trouxeram uma nova agenda ambiental e de comportamento. Os partidos de direita convencional não souberam responder por estarem concentradas na agenda econômica, e isso abriu espaço para a ultradireita que dá enorme importância ao tema. Parte do crescimento dos partidos de ultradireita veio para responder à agenda de comportamento da esquerda.

Já na esquerda, a agenda pela defesa dos direitos de gênero e raça foi incorporada como um movimento partidário próprio, como no caso do Partido Verde alemão, ou então forçou os partidos social-democratas a se modificar e incluir essas pautas, como ocorreu com o PSOE na Espanha.

VEJA – Isso significa que o voto econômico deixou de ser importante?

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Rovira – Muitas teorias da ciência política sempre pensaram que o espaço político está estruturado apenas na dimensão econômica, mas creio esta dimensão não é necessariamente a única e nem mesmo a mais relevante.

Penso nisso num duplo sentido. Num primeiro sentido porque depois do famoso Consenso de Washington, no qual tanto conservadores quanto sociais-democratas passaram a apostar no livre mercado, a economia deixou de ser um elemento polarizador. Ora, se na economia os partidos são iguais, o eleitor passa a escolher onde eles se diferem, no casamento igualitário ou na política migratória. Assim cada vez mais pessoas dizem “eu me preocupo com as mudanças climáticas” e outras que dizem “para mim o controle da imigração é importante” e por isso decidem o seu voto, independente de como partido pretende tocar a economia.

VEJA – O avanço do populismo de direita na Europa também foi acompanhado pelo crescimento do populismo de esquerda. São fenômenos semelhantes?

Rovira – Não, porque no contexto europeu o populismo de esquerda tem sido malsucedido. Você tem casos como o da França Insubmissa do Màlenchon na França ou do Podemos na Espanha, mas se virmos o mapa da Europa a esquerda populista não é grande.

É fato que os populistas de esquerda e de direita se assemelham na construção da democracia como um modelo plebiscitário e antiliberal, mas obviamente ele tem quase nada em comum em termos das políticas que defendem. Os dois lados usam a construção populista de uma elite “ruim e perversa” e há um povo “puro”, mas como eles vão definir quem são os “bons” e quem são os” maus” é totalmente diferente.

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VEJA – O populismo de direita latino-americano é similar às características do europeu?

Rovira – Por um longo tempo, a América Latina foi relativamente imune a esses partidos populistas da extrema-direita europeus, mas isso mudou fundamentalmente com Bolsonaro. Inicialmente, achamos que Jair Bolsonaro também era um caso excepcional, mas hoje com José Antonio Kast (chile), Javier Millei (Argentina), Nayib Bukele (El Salvador e o prefeito de Lima, Rafael López Aliaga (Peru), estamos vendo surgir forças que não são idênticas, mas semelhantes em termos de ideologia.

Cientistas políticos são tão ruins quanto economistas fazendo previsões, mas creio que há razões pelas quais poderíamos pensar que essas forças de ultradireita na América Latina vão crescer ao longo do tempo, mas não necessariamente serão tão fortes quanto no Brasil.

VEJA – Por quê?

Rovira – Há algumas agendas que unem esses políticos latino-americanos. Uma delas é a segurança pública, que esse populismo de extrema-direita pode articular como um discurso acusando a elite de ter falhado e que somente a mão forte da repressão policial pode garantir a ordem. A questão moral, que no Brasil tem grande impacto em função do segmento evangélico, está lentamente ganhando mais terreno. A imigração é outro ponto, em alguns países. Então, eles poderão gerar polarização eleitoral, não necessariamente para ganhar a eleição, mas o suficiente para poder consolidar 20% a 25% do eleitorado.

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VEJA – Outro ponto em comum da direita latino-americana é o antichavismo.

Rovira – Exato. O antichavismo é o sucessor do anticomunismo dos 1960 e 70 e uma característica quase exclusiva da América Latina. Na Europa, com a possível exceção do ultradireitista espanhol Vox, o fantasma do comunismo não ganha eleição. Isso tem a ver com os contextos culturais distintos

VEJA – No Brasil, creio impossível compreender o poder do bolsonarismo sem sua eficiência nas redes sociais. Qual o papel da mídia digital no avanço da direita?

Rovira – Não sou especialista em Brasil, mas partilho do seu diagnóstico de que há evidência da importância das redes sociais para Bolsonaro. A eleição de Bolsonaro é a combinação de diferentes elementos _ o antipetismo, a Lava Jato, etc_ onde o redes sociais tiveram um papel, mas não o único.

Concordo que as forças de extrema-direita vão fazer uso de certas redes sociais como um mecanismo para mobilizar seus leitores, mas não em todos os países do mundo elas terão tanta importância quanto no Brasil.

VEJA – O impacto das redes pode então ser maior em sociedade já polarizadas?

Rovira – Uma sociedade mais polarizada, como os EUA ou o Brasil, o contexto pode permitir que o impacto das redes sociais seja maior. Nos EUA, você conversa com um democrata e depois com um republicano e parecem que eles vivem em dois países distintos. Parte disso é que um assiste à rede CNN e outro a Fox News, como se vivessem em diferentes câmaras de eco.

Quando a sociedade é muito polarizada, onde não há diálogo, o uso das redes facilita que os atores da extrema-direita possam desenvolver ou expandir a sua base.

VEJA – O senhor falou sobre a polarização nos EUA e o Brasil vive algo similar. O país visto por um eleitor de Lula é oposto daquele de um bolsonarista. Como se governa um país tão polarizado?

Rovira – O que está em jogo é o próprio sistema democrático porque temos um segmento que não está disposto a tolerar as regras do jogo democrático e o outro está. Então a pergunta ‘como se governa um país tão polarizado?’ se traduz em ‘como sustentamos a democracia no longo prazo?’.

A chave para mim é o governante construir pontes com as versões mais moderadas da oposição para tentar incorporá-los. Se isso não for conseguido, governar se torna praticamente impossível e sustentar o regime democrático a longo prazo é muito difícil.

O risco é cairmos no cenário apresentado no clássico “Como Morrem as Democracias”, de Daniel Ziblatt de Steven Levitsky. Um exemplo do livro mostra como o Senado republicano se recusou a votar a nomeação de um juiz da Suprema Corte do então presidente Obama quebrando uma regra informal da relação entre os Poderes. Quando a elite está tão polarizada, é muito difícil governar.

A melhor possibilidade de governar é tentar mostrar aos setores moderados da oposição que se algumas regras básicas de convivência não forem respeitadas, o que está em jogo é a sobrevivência do regime político.

No caso do que aconteceu em 8 de janeiro em Brasília, o fundamental ao governo Lula é mostrar aos partidos conservadores que “aqui se cruzou uma fronteira” e que independente se um lado é direita e o outro esquerda existem regras mínimas que todos precisam respeitar. Todos precisam concordar que o 8 de janeiro passou de todos os limites.

VEJA – Por esse raciocínio, tanto Lula da Silva quanto Joe Biden correm um risco ao governar apenas para os seus eleitores?

Rovira – Sim, mas este um problema não apenas de eleitorado, mas também da elite política. A estabilidade do regime depende que a elite política no governo e elite política da oposição compreendam que de suas atitudes dependem se o regime democrático seja sustentável no longo prazo. Para isso, é fundamental ao governo incorporar uma fração da oposição para dar sustentabilidade ao sistema político.

VEJA – A disputa política é apenas parte de uma sociedade polarizada. Como se convive numa sociedade fracionada como a brasileira, na qual famílias romperam laços por divergência eleitoral?

Rovira – Nesse caso, o desafio é similar ao de como governar. A questão é como fazer pessoas com distinções políticas encontrar denominadores mínimos comuns, o que muito mais complexo para países de alto nível de polarização como o Brasil e EUA.

No Chile, por exemplo, a rejeição à extrema-direita reúne 60% da população, e inclui gente de direita, conservadores e gente de esquerda. Mas temos o caso de El Salvador, onde há pessoas que dizem “tanto faz” se os direitos humanos estão sendo respeitados, e quando chegamos nesse nível, não há diálogo. Então, os desafios da vida dos cidadãos em uma sociedade polarizada são tão difíceis quantos da convivência política da sua elite.

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