O texto é confuso, o raciocínio é tortuoso e o órgão ao fundo é desnecessário, mas os 2 minutos e três segundo do vídeo de Ciro Gomes sobre religião representam a mais ambiciosa tentativa do ex-prefeito, governador, ministro e deputado a chegar à Presidência. Terceiro colocado nas pesquisas, com índices que variam entre 6% e 10%, Ciro é hoje a alternativa mais viável, senão a única, para os nem-nem, aqueles que rejeitam Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva.
Quando foi candidato a presidente pela primeira vez em 1998, Ciro representava o que hoje se chamaria de terceira via, um candidato de centro-esquerda que usava sua experiência no Plano Real para arrancar votos de FHC e seu rompimento com os tucanos para tomar o lugar de Lula como líder da oposição. Saiu com 11% dos votos, um bom resultado para a estreia. Em 2002, ele foi vítima de um massacre do que hoje se chamaria de fake news por parte da campanha de José Serra. Ficou reduzido aos 12%. Aproximou-se de Lula e tentou por anos virar o seu herdeiro, até descobrir tardiamente que o ex-presidente só vai se aposentar quando morrer. Ou talvez nem assim. Em 2018, ficou de novo com 12% dos votos.
Para 2022, o novo Ciro tenta construir à fórceps um espaço que parece diminuto. Em uma simbiose momentânea, tanto o bolsonarismo quanto o lulismo depende da outra força para manter sua base acesa e, assim, evitar que um novo concorrente se apresente e quebre essa dicotomia. O ocaso da articulação por um nome da centro-direita e o histórico de Ciro na defesa de um programa econômico intervencionista fizeram com que muitos empresários e agentes do mercado financeiro decretassem a polarização como um fato irreversível. Nesse cenário, entre apostar em uma conversão de Ciro ao liberalismo, os milionários das avenidas Faria Lima e Paulista consideram mais viável se adaptar a Bolsonaro e Lula.
Numa eleição em que um candidato é o presidente, o outro ocupou o cargo por oito anos e a turma do dinheiro olha com desconfiança, Ciro tomou para si o papel de anti establishment. Se o Ciro de 2002 e 2018 já não tinha freios na língua, o Ciro de 2022 é o anjo vingador que bate em Bolsonaro e Lula com a mesma falta de piedade e iguala ambos em um tribunal particular.
No cenário de Ciro Gomes, Lula já está no segundo turno, mas o seu favoritismo numa disputa com Bolsonaro é, simultaneamente, sua maior força e fraqueza. Força porque atrai os políticos e empresários que sempre apostam no cavalo vencedor. Fraqueza porque permite ao antipetismo imaginar a possibilidade de um outro candidato que não seja Bolsonaro.
Por isso nos vídeos, Ciro fala a quem nunca votou nele, mas que hoje está em dúvida. Aos evangélicos cita pontos importantes para a teologia da prosperidade, como a superação e a solidariedade, desconhecidos pelo bolsonarismo. Noutras oportunidades, ele reduz o bem-estar do governo Lula à picanha e cerveja, repisa as denúncias de corrupção contra o PT e reafirma que fez certo ao abandonar a campanha do segundo turno. Na outra ponta, lança um vídeo inteiro no qual o nome de Bolsonaro é substituído pela palavra “ódio”.
Vários políticos se sentiram predestinados a serem presidentes. Carlos Lacerda, Leonel Brizola, Ulysses Guimarães e José Serra, cada um a seu modo enxergavam a Presidência da República como uma consequência natural de sua trajetória. Prestes a entrar na sua quarta disputa em 24 anos, Ciro Gomes entra no grupo dos obstinados se reinventando como o contra-tudo-que-está-aí.