Foi um Lula da Silva constrangido que chegou à solenidade com pastores protestantes e evangélicos na quarta-feira, faltando onze dias para o segundo turno. A solenidade em um hotel em São Paulo era para a divulgação de uma carta aberta de Lula na qual ele se comprometia a garantir a liberdade religiosa, não enviar projeto para mudar a lei sobre aborto ou incluir o ensino de “ideologia de gênero” no currículo escolar — igual ao que ele fez durante os oito anos como presidente. O constrangimento de Lula com a carta era tamanho que ele sequer leu o texto, deixando a função para o ex-seminarista católico Gilberto Carvalho.
É impossível não comparar a cena com 22 de junho de 2002, quando também a contragosto Lula assinou a “Carta ao Povo Brasileiro”, se comprometendo se eleito a não dar calote nas dívidas externas e internas, cumprir o superávit fiscal e não enfrentar a crise econômica com “de modo voluntarista, mas por uma ampla negociação nacional”. À época, Lula saiu do discurso dizendo para o mesmo Gilberto Carvalho. “O Palocci (Antonio Palocci, futuro ministro da Fazenda), chegou no meu limite”.
Nesta semana, Lula se virou para Carvalho e disse: “Já assinei (a carta aos evangélicos). Agora, você lê”. O fato de que em 20 anos o candidato da esquerda assusta mais os fiéis pentecostais do que os traders da Faria Lima diz muito sobre o Brasil.
O texto assinado pelo PT contém uma impressão digital de que havia sido editada por um católico. O versículo indicado no discurso estava identificado como Tiago, 1,27, como na liturgia romana, ao invés de Tiago 1:27 das Bíblias protestantes.
A carta foi proposta em junho, quando Bolsonaro começou a subir no segmento evangélico. “Não preciso prometer não fazer o que eu nunca fiz”, repetia Lula, quando a sugestão chegava até ele. Numa leitura simplista, o ex-presidente, assim como vários assessores mais velhos, acreditava que os evangélicos mais pobres terminariam votando no PT com ou sem carta em função das questões econômicas.
Estavam errados por vários motivos: a sensação econômica melhorou nos últimos meses, a identificação de grupo entre os evangélicos é muito forte e Lula foi alvo de um tsunami de ataques onde foi vinculado ao satanismo, aborto e fechamento de igrejas. O PT não fez um gesto para se aproximar do segmento até ser tarde demais.
Com apoio unânime das principais dominações pentecostais e neopentecostais, Bolsonaro teve no primeiro turno mais de 60% dos votos, o mesmo que teve no segundo turno de 2018. A tendência é que no dia 30 ele ultrapasse os 70%.
Foi só depois da vitória avassaladora do presidente no primeiro turno que Lula foi demovido. Mesmo assim, continua sem parecer entender por que ele precisava lançar a carta. “A verdade é a seguinte: ninguém estava preparado para enfrentar a monstruosidade dessa rede mentirosa”, disse Lula.
Na solenidade em São Paulo, falaram evangélicos com perfil mais à esquerda, como as ex-ministras Benedita da Silva e Marina Silva e a senadora eleita pelo Maranhão Eliziane Gama. Como notou a repórter Anna Virginia Balloussier, da Folha, não foram chamados a discursar nomes mais familiarizados às vertentes conservadoras, como o ex-bispo da Igreja Universal Romualdo Panceiro e Paulo Marcelo, do Gideões Missionários da Última Hora, congresso pentecostal que serviu de escola para pregadores como Marco Feliciano.
Em entrevista à Folha, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, ironizou a carta. “O Lula se rendeu à pauta da família, isso está muito claro, com o rascunho improvisado da carta. E todo mundo sabe que quem vence a eleição é quem define o tema. O tema dessa campanha não é economia, são os temas propostos por Bolsonaro, defendidos por ele — o que significa uma evidência a mais que o presidente venceu o debate desta eleição. (…) Lula se preparou para uma guerra que não existiu. Se preparou para um cenário no qual o Brasil estava em ruínas, com a economia péssima e povo passando fome. E, como o Brasil é uma locomotiva diante do mundo em termos de aumento de emprego e queda na inflação, sobrou para Lula vir lutar no campo adversário. É por isso que ele vai perder.”
No ótimo livro “A religião distrai os pobres? — O voto econômico de joelhos para a moral e os bons costumes”, o cientista político Victor Araújo analisa os desafios da esquerda em se conectar com os evangélicos:
“Os partidos de esquerda, por sua vez, têm como primeira opção tentar enfraquecer a pauta moral e recolocar no centro do debate a dimensão de renda. Neste caso, existe o risco de perder apoio da parcela mais conservadora do eleitorado que não segue a lógica econômica do voto. Uma segunda opção é tentar se distanciar de pautas mais progressistas que possam minar o apoio eleitoral dos pobres conservadores, mas surge o obstáculo de perder apoio entre os eleitores de renda média com maior escolaridade (bem como de parte da militância organizada e representantes de maiorias minorizadas, como negros e mulheres, mais afetadas por uma agenda conservadora moralizante). Uma terceira opção é acirrar a polarização nas eleições, explorando a identidade religiosa do eleitorado. Por exemplo, os partidos de esquerda podem mobilizar parte do eleitorado religioso em seu favor por meio de um discurso identitário-religioso. Mas o sucesso dessa estratégia depende do crescimento de longo prazo dos grupos religiosos que rivalizam nas eleições. No caso brasileiro, mobilizar o eleitorado católico contra o eleitorado evangélico não seria uma estratégia inteligente”.
Os evangélicos formam o coração do bolsonarismo. Em 2018, Bolsonaro venceu a eleição contra Haddad por cerca de 10,7 milhões de votos, quase o mesmo tanto de votos a mais da quantidade que se estima que teve entre os evangélicos. Faltando dias para o segundo turno, é impossível Lula reequilibrar o jogo.