Todas as manhãs, o presidente e seus principais assessores recebem uma folha de papel ofício com eventos do dia nos dois lados coloridos pelo seu grau de risco, incluindo particularmente os momentos de exposição pública do presidente. A gradação vai de verdes para eventos tranquilos, como uma cerimônia do Palácio do Planalto, até vermelho para os perigosos, como a ida a um estádio de futebol em um momento politicamente tenso.
A folha define não apenas a segurança do presidente, mas chama a atenção para “perturbações sociais”, um guarda-chuva que inclui do tamanho das filas dos caminhões nos portos às greves de transporte coletivo. Carimbado como secreto, o documento é assinado pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), subordinada ao ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência.
Esse documento aparentemente simples envolve agentes do país inteiro e corresponde à parte mais visível da ação da Abin. Criada para suceder o temível Serviço Nacional de Informações da ditadura (SNI), a Abin é um órgão civil, que atua em conjunto principalmente com o setor de inteligência da Polícia Federal. Formalmente, a missão da Abin é “fornecer ao presidente da República e a seus ministros informações e análises estratégicas, oportunas e confiáveis, necessárias ao processo de decisão”. Na prática, a Abin deveria ser o principal alerta sobre riscos e o apoio para ações de curto prazo. Faria parte do “Ministério do Vai Dar Merda”, a pasta imaginada pelo compositor Chico Buarque para evitar erros do presidente.
Por tudo isso é escandalosa a ação do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, de ter enviado agentes da Abin para monitorar participantes da Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP 25), realizada em Madri, em dezembro passado, como revelou reportagem de Felipe Frazão, do jornal o Estado de S. Paulo. Nesta ação, o governo brasileiro mentiu para a ONU ao enviar seus agentes como se fossem membros da comitiva e os usou para espionar diplomatas estrangeiros participantes da conferência.
Em uma operação, o general (1) rompeu um acordo não-escrito de que os debates da ONU são livres de espionagem, gerando desconfiança dos organismos internacionais sobre a atuação brasileira. Os agentes brasileiros tiveram acesso a todas as reuniões, como se fossem negociadores de verdade; (2) desperdiçou dinheiro público, uma vez que as informações da COP-25 podiam ser acompanhadas online ou pelas informações da delegação dos negociadores brasileiros; (3) desvirtuou as funções da Abin para uma querela pessoal do general contra ONGs ambientalista que criticam o governo Bolsonaro; e (4) fez tudo de forma tão atrapalhada que em poucos meses, a imprensa tinha até o nome dos agentes.
Em sua conta no Twitter, o general escreveu que o órgão deve acompanhar campanhas internacionais apoiadas por “maus brasileiros”, que o governo Jair Bolsonaro entende como prejudicial ao Brasil. “Temas estratégicos devem ser acompanhados por servidores qualificados, sobretudo quando envolvem campanhas internacionais sórdidas e mentirosas, apoiadas por maus brasileiros, com objetivo de prejudicar o Brasil”, escreveu o ministro.
É uma saraivada de tolices. Primeiro porque desmerece a capacidade dos diplomatas brasileiros de defender os interesses nacionais em debates de alto nível. Os embaixadores brasileiros têm uma formação específica de atuação em órgãos multilaterais, especialmente os de meio ambiente. Segundo porque nada que as ONGs dizem nesses fóruns é novidade. Basta um monitoramento de redes socais para saber o que os ambientalistas estão dizendo e o que defendem.
O terceiro ponto mostra um erro de foco. O ministro e vários de seus colegas generais acreditam, sinceramente, que está em curso um campanha internacional para prejudicar o Brasil. Seria mais fácil comprovar isso se outro general, Santos Cruz, não houvesse rompido unilateralmente o contrato de comunicação internacional do governo, mas vamos partir do princípio que sim, existe uma campanha estrangeira contra o Brasil. Não seria surpresa. Em 2009, por exemplo, uma agência de relações públicas foi contratada por um fabricante de alimentos europeu para disseminar a informação sobre o avanço da produção de cana-de-açúcar na Amazônia.
Mas se o problema é a campanha de difamação, seria mais prático o general colocar a Abin para monitorar a ajudar na prisão de fazendeiros e garimpeiros que estão ateando fogo ilegalmente na Amazônia e no Pantanal. A imagem do Brasil no exterior não está na lama por uma eventual ação comercial de competidores estrangeiros, mas pela competência do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em produzir fogo e desmatamento.
O quarto ponto é o mais delicado. Não cabe ao general Heleno decidir quem são os bons ou maus brasileiros. Eu, por exemplo, considero Ricardo Salles o pior ministro do Meio Ambiente da história e responsável direto por um retrocesso na proteção ambiental. Mas afirmo isso com dados. Não me cabe julgar o caráter de Salles, assim como não cabe ao ministro Heleno decidir que um brasileiro que critica o seu governo está sendo “mau” ou “bom”. Isso é o uso do Estado para ameaçar a liberdade de expressão. É tentar transformar a Abin de volta no velho SNI.