Anna Júlia acaba de entrar na faculdade de direito e sonha em conquistar um estágio no escritório de advocacia onde já faz um treinamento sem remuneração. Obstinada e inteligente, a jovem precisa enfrentar, além de suas próprias inseguranças, a competição acirrada com outros colegas. No meio do caminho, porém, o possível romance com um músico de rua galanteador, João Paulo (Lucas Leto), e a turbulenta relação com a mãe, que a abandonara no passado, Patti (Iza), podem atrapaclhar suas ambições — como também provocar um impacto em sua jornada de autodescoberta na vida adulta. Por mais genérica que a sinopse possa parecer, a trama de Um Ano Inesquecível — Outono, longa musical dirigido por Lázaro Ramos que estreia no Prime Video na sexta-feira 9, tem um diferencial em relação a outras comédias românticas juvenis: Anna, interpretada pela cantora Gabz, é negra. E isso passa longe de ser um problema: a chefona da firma de advocacia também é. Com um elenco majoritariamente semelhante às duas, a história ilumina o black joy — a alegria negra —, uma tendência em ascensão nos filmes e séries.
A onda do black joy vai na contramão de obras densas de tom militante como o filme Medida Provisória, distopia sobre segregação entre brancos e negros, e a série especial da Globo Falas Negras, sobre figuras que lutaram pela causa racial — ambas também dirigidas por Lázaro Ramos. O conceito visa a mostrar a experiência de afrodescendentes para além das mazelas, enaltecendo narrativas que os coloquem em destaque positivamente.
Medida provisória – Diário do diretor
A alegria negra ganhou força nos últimos anos com produções como Insecure (2016-2021), série de comédia ácida da HBO criada e protagonizada pela afiada Issa Rae. Moradora de Los Angeles à beira dos 30 anos, a personagem surfa pelas experiências conturbadas de carreira e relacionamentos amorosos como qualquer mulher de sua faixa etária, tendo apoio das amigas e parceiros — também negros — para se fortalecer e encontrar respostas sobre qual rumo tomar na vida. Da série sobre o universo escolar americano Abbott Elementary (Star+) a novelas atuais como Vai na Fé (Globo) e A Infância de Romeu e Julieta (SBT/Prime Video), negros abandonam os antigos papéis de pobres sofredores para assumir posição de grandeza: agora são professores, advogados, empresários, e sem necessariamente uma trilha de dor e desafios. “A gente quer se ver desse jeito, na batalha pelo emprego dos sonhos, amando, beijando, tendo uma relação inspiradora entre pai e filha”, diz Lázaro Ramos (leia mais abaixo).
The Misadventures of Awkward Black Girl
Parte de uma tetralogia de filmes baseada no livro de contos homônimo Um Ano Inesquecível, de Babi Dewet, Thalita Rebouças, Bruna Vieira e Paula Pimenta, Outono é uma típica trama para amantes de romances açucarados e simples. Mas, assim como todas as obras no espírito do black joy, tempera esse lado pueril com alfinetadas sutis no racismo velado e estrutural — como o hábito de muitas pessoas brancas de tratar negros como empregados com naturalidade e cinismo. A produção prova que, obviamente, negros também vivem fora de espaços violentos, amam, se divertem e têm dilemas pessoais que vão muito além da necessidade de enfrentar o preconceito. A alegria está em cena, e é bela de se ver — principalmente, para quem consegue enxergar seu reflexo além da tela.
“Queremos nos ver sonhando”
Em entrevista a VEJA, Lázaro Ramos falou sobre experiência de dirigir Outono e enalteceu a tendência black joy.
Outono tem uma proposta bem diferente de Medida Provisória (2020), que investia numa crítica social forte. Por que essa mudança temática radical? É engraçado porque não vejo tanta diferença, enxergo como uma extensão. Medida Provisória fala sobre dores, mas também tem leveza, como uma cena de dança que mostra esse aspecto da existência negra no mundo, a música.
Você definiria Outono como black joy? Sim, claro. Especialmente como diretor, foi muito importante para mim mostrar coisas que eu acho que a população negra quer ver na tela, como nos ver sonhando, na batalha pelo emprego dos sonhos, amando, beijando, tendo uma relação inspiradora entre pai e filha. Ninguém pode ser definido apenas por uma experiência.
O filme sempre foi projetado como um musical? Não, ele foi transformado. A música do filme cresceu quando vimos a riqueza e a beleza que seria poder ressaltar artistas como Marvin Gaye, Péricles, Olodum, Gilsons, Iza, Larissa Luz… E tudo isso é nosso, tem uma essência negra! Olha quão poderoso é isso.
Como pai de duas crianças, sentiu que a paternidade mudou seu olhar sobre os projetos que aceita? João Vicente (11 anos) e Maria Antônia (8) influenciam bastante. Minhas escolhas passam por pensar nesses seres humanos que estou tendo o privilégio de ajudar a criar e educar com a Taís (Araujo).
Ultimamente, você tem dirigido mais. Pretende seguir nos bastidores? Não pretendo seguir uma linha específica. Me alimento há muitos anos de escutar o que a sociedade está pedindo e assim criar obras que sejam úteis para o nosso tempo. Mas ser ator é minha essência, não vou deixar de atuar nunca.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2023, edição nº 2844
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