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Série ‘Immigration Nation’ expõe as dores da política migratória de Trump

Nova produção documental da Netflix entra nos bastidores do serviço de imigração americano e dá rosto e voz aos personagens de toda a engrenagem

Por Amanda Capuano Atualizado em 10 ago 2020, 19h14 - Publicado em 10 ago 2020, 12h05

Em um espanhol embargado, um homem de meia-idade faz um pedido ao filho no telefone: cuide de seus irmãos e lembre-se de pagar o carro todo dia 13. Em seguida, ele é trancafiado em uma sala estreita com janelas de vidro, enquanto um supervisor do serviço de imigração americano (ICE, sigla para Immigration and Customs Enforcement) relata uma satisfação inerente em remover pessoas que “não pertençam” ao país. A cena é uma das muitas que embrulham o estômago em Immigration Nation, série documental da Netflix que chegou à plataforma na semana passada. Carlos Perez, o homem que suplicou ao filho que pagasse as contas em dia, é um ex-policial de El Salvador que entrou ilegalmente nos Estados Unidos enquanto fugia das máfias que combatia em sua terra natal. Sem ficha criminal e enganado por uma advogada que alegou ter feito um pedido de asilo, foi detido no ICE ao se apresentar voluntariamente para uma fiscalização de rotina, e teme ser morto caso a deportação se confirme.

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A história de Carlos e de sua família é apenas uma das muitas relatadas sob a direção de Christina Clusiau e Shaul Schwarz. Durante três anos, as cineastas acompanharam com uma proximidade inédita o trabalho dos agentes da imigração americana dentro da política de tolerância zero implementada por Donald Trump — que desde que assumiu a presidência, em 2017, deixou de priorizar a apreensão e deportação de indivíduos com fichas criminais e voltou-se para todos os imigrantes sem documentação. O acesso privilegiado deu-se ao fato de que o documentário foi negociado e aprovado junto a um representante do ICE, em uma aparente tentativa de contar sua versão dos fatos frente às represálias que o órgão passou a sofrer com as novas políticas. O resultado final não agradou, e o ICE tentou atrasar a estreia para depois das eleições de 2020, mas o lançamento estava assegurado em contrato, e pode ser conferido na plataforma.

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Pai reencontra o filho depois de serem separados na fronteira dos Estados Unidos (Reprodução/Netflix)

Mas se há uma coisa de que o ICE não pode reclamar, é de falta de espaço ou silenciamento. Na verdade, é justamente aí que o tiro saiu pela culatra. Ao longo de seis episódios, a história dos imigrantes é intercalada com cenas de apreensões in loco e depoimentos dos mais diversos níveis hierárquicos. Em treinamento, os agentes são instruídos a se identificarem como policiais comuns, assim, podem induzir imigrantes a permitir buscas nas casas sem mandados — uma vez convidados a entrar, ficam autorizados a prender o indivíduo “removível” (a pessoa que é efetivamente alvo da busca) e eventuais “colaterais” (outros imigrantes ilegais que encontram no caminho). “Eu não sou obrigado a te mostrar o mandado, mas você precisa confiar que tenho um”, diz um oficial antes de enganar uma mulher de inglês precário para entrar em sua casa e levar seu marido.

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Mesmo que Trump tenha sido eleito sob o mote de controle migratório, a linguagem que reduz pessoas a “efeitos colaterais” e uma criança chorando enquanto o pai é levado acorrentado dos pés à cintura não é algo que fique muito bem nas telas. Não ajuda também o fato de que, enquanto uma minoria mostra desconforto com a nova política, a maior parte dos trabalhadores do ICE não expressa empatia alguma — em uma cena, um dos agentes descreve-se como um “taxista” que leva as pessoas ao seu destino e ri ao dizer que quem decide, de fato, qual será esse destino é o juiz. A juíza, por sua vez, lamenta que os magistrados de imigração, ao contrário das demais áreas jurídicas, reportem ao poder executivo e sejam submetidos a metas de deportação, o que pressiona os juízes e compromete a isenção dos julgamentos.

Salta aos olhos ainda o discurso recorrente de que os trabalhadores apenas seguem ordens, o que expõe o processo sistêmico, e a falta de humanidade a que são submetidos os imigrantes americanos. Ao dizer que coloca os próprios sentimentos de lado, um dos agentes compara sua fala às que costumavam ser ditas pelos nazistas para justificar seus atos no holocausto, mas adiciona que apenas defende a soberania das fronteiras. Mas afirmar que todos os funcionários do ICE são nazistas, ou até mesmo racistas, é uma armadilha simplista, já que parte da equipe é visivelmente latina. Um deles, inclusive, conta que a avó foi deportada, enquanto o outro lamenta a comparação e aponta que a instituição não persegue pessoas por cor de pele ou nacionalidade, apenas aplica a lei, moldada a partir de escolhas políticas da própria população. O buraco, portanto, é bem mais embaixo.

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César, um veterano de guerra americano deportado busca a clemência da governadora recém-eleita no Novo México (Reprodução/Netflix)
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Opondo-se a essa ideia, um veterano de guerra, César (o sobrenome não é revelado), cita Thomas Jefferson ao dizer que quando a injustiça torna-se a lei, resistir é um dever. Ele conta que chegou aos Estados Unidos com a mãe aos 2 anos de idade. Na adolescência, decidiu seguir carreira militar e entrou para a marinha. Em uma ocasião, César foi pego com maconha no Novo México, mas não chegou a cumprir pena. Algum tempo depois, saiu do país a trabalho e quando tentou retornar foi deportado pela condenação que desconhecia. “Nós somos autorizados a morrer pelo país, mas não podemos viver nele?”, questiona sobre as centenas de veteranos deportados. Um outro militar chorou ao dizer que voltarão apenas em caixões, para serem enterrados com honrarias e homenageados por servir a América que expulsou-os em vida.

Embora fortes, as frases não são mais tristes do que o relato da busca dos pais separados dos filhos nas fronteiras. Aliás, se há um ponto em que os próprios agentes concordam ser dilacerante é quando a história envolve crianças. Isso, é claro, não impediu que centenas delas fossem mantidas em abrigos precários por ordem “de cima”. Em uma das cenas, uma menina por volta dos 8 anos chora ao reencontrar o pai e relatar que lhe disseram que ela nunca mais o veria. Enquanto brinca na praia, a mãe de um garotinho de 3 anos conta que o filho não falou durante dias depois de reencontrá-la e que acordava de noite aos gritos. Nesse sentido, se afastar emocionalmente das deportações e tratá-las como apenas mais um trabalho parece mais uma forma de não pensar nas consequências do próprio ofício. Sem delongas, e com uma realidade crua, Immigration Nation dá rosto ao noticiário, e nos faz pensar sobre o impensável.

Confira o trailer:

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