Em uma sala vazia, com apenas uma cadeira de madeira no centro, Pelé caminha com ajuda de um andador, mostrando que as pernas, outrora fortes e ágeis, sofreram com a ação do tempo, em decorrência de problemas nos quadris. Desde seu primeiro momento, Pelé, novo documentário da Netflix sobre o Rei do futebol, que estreia nessa terça-feira, 23, deixa claro ao que veio: é um filme sobre vulnerabilidade humana, para além das habilidades inigualáveis do maior de todos os tempos. Registro relevante da carreira entre as Copas do Mundo de 1958 e 1970, período que abrange os três primeiros títulos mundiais da seleção brasileira, o documentário tem entrevistas com nomes de peso: ex-companheiros do Santos e da Seleção, personalidades do esporte e da política, além de jornalistas.
Com um acervo de imagens colossal (graças ao arquivista e pesquisador brasileiro Antônio Venâncio), e muitos gols (como não podia ser diferente), o documentário ganha força ao iluminar as fragilidades de Pelé, muito mais do que seus poderes incontestáveis dentro de campo. Numa das cenas, ele almoça com seus antigos companheiros de Santos, sentado em uma cadeira de rodas. Em outro, em um casamento comovente entre o passado e o presente, assiste imagens de si mesmo na Copa de 1966, com o rosto iluminado pelo projetor. As conquistas — três Copas do Mundo e os mais de mil gols — são o pano de fundo para um debate mais profundo e interessante sobre a sua trajetória.
Não se trata, para começo de conversa, segundo o diretor, o inglês David Tryhorn, de uma “peça de comparação”, pondo na balança as conquistas de Pelé e a de jogadores de hoje. “Com Messi, por exemplo, acredito que as comparações são relativamente sem sentido. Ele pode ser muito melhor que Pelé. Mas ele nunca conseguiria fazer o que Pelé fez”, diz o documentarista, um dos responsáveis pelo admirado longa Kenny, que conta a história do escocês Kenny Dalglish, lenda do Liverpool. A ideia da produção, e eis aí o seu fascínio, é servir como “uma cápsula do tempo”, na definição de Ben Nicholas, codiretor. “O Brasil antes de Pelé e o Brasil depois de Pelé são dois países totalmente diferentes em termos de identidade cultural e nacional”, afirma.
A história do jogador se interliga, inevitavelmente, com a história de um Brasil que, a partir de 1958 passa a se tornar reconhecido no cenário global, tanto no futebol, quanto na política, mas que mergulha nos horrores da ditadura militar a partir de 1964, com o golpe que depôs João Goulart. Enquanto o Rei continuava empolgando como jogador, a censura e a violência fechavam o cerco contra dissidentes políticos. E o Rei, nesse ambiente fora do gramado? É o que o filme busca responder.
Pelé, com alguma ingenuidade, mas também com sinceridade, reconhece ter tido privilégios em suas relações com as autoridades, diz ter atendido a convites por educação e, pela primeira vez, revela: foi instado a jogar a Copa de 1970 por pressão do governo (ele se dizia desgostoso, depois do péssimo desempenho do Brasil em 1966). Pelé não deixa dúvidas – o craque sabia estar ajudando o governo, mas não se metia em política, porque não era de seu feitio. Não se podia exigir de Pelé, em contexto completamente diferente dos Estados Unidos, que ele se comportasse com a firmeza de Muhammad Ali na lida contra o racismo e pelos direitos civis. Diz o jornalista Juca Kfouri, em momento chave do documentário, ao dar o tom da prosa: “Enquanto Ali arriscava ser preso por se recusar a servir no Vietnã, Pelé arriscava ser assassinado, com aval do Estado, caso se posicionasse”. É o que Pelé revelou a pessoas próximas, mas nunca deixou que vazasse. E então, ele apenas jogava futebol, e seria injusto exigir de um ser humano (sim, Pelé é um deles) posturas sobrenaturais, impossíveis de se concretizar.
Pelé corria, Pelé driblava, Pelé marcava gols – e, no entanto, a engrenagem de Brasília debaixo dos militares da linha dura não cessava. Comunista declarado, o técnico João Saldanha, famoso por confrontar o general Emílio Garrastazu Médici com a célebre frase “eu não escolho os ministros dele, e ele não escala a minha seleção”, perdeu o posto para Zagallo, que chegou com uma comissão técnica formada por militares. O poder do governo era claro e estridente. O governo Médici usou e abusou da seleção brasileira para benefício próprio, transformando a paixão em patriotismo.
“Com a ditadura, mudou alguma coisa para você?”, pergunta Tryhorn a Pelé no filme. “Não, o futebol continuou o mesmo. Para mim, pelo menos, não mudou nada”, responde o 10. “E você sabia tinha conhecimento dos abusos cometidos durante os anos de chumbo?” A resposta, honesta e incômoda para quem a escuta: “Se eu dissesse que não sabia, estaria mentindo. Mas era difícil saber o que era verdade e o que era mentira”.
E, no entanto, mesmo para jogadores da Seleção, a postura de Pelé soava simplista em demasia. Paulo César Caju, reserva em 1970, hoje colunista de PLACAR, cita o abraço do atacante com o general como um rebaixamento social. “Pelé retoma a posição do ‘sim, senhor'”, diz. Outros entrevistados preferem poupar condenações e afirmar que Pelé apenas cumpriu o que era esperado – e, insista-se, talvez não lhe restasse outra saída. E Pelé, apesar da ditadura a usá-lo, apesar de tudo, saiu-se com a grandeza possível, “um símbolo da emancipação do brasileiro”, nas palavras de Gilberto Gil.
Talvez falte ao documentário um olhar mais aprofundado sobre o significado de Pelé para além das partidas – na política, em sua representação social para um país que crescera com a marca da escravidão. Mas há nele algumas boas pitadas, interessantes e inéditas, afeitas a iluminar a única faceta de Pelé ainda não totalmente compreendida: a humana, demasiadamente humana. Pelé merece ser visto, é necessário.
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