Sentado à mesa com uma representante do grupo terrorista irlandês IRA, Tommy Shelby (Cillian Murphy) explica seu modo de ver a política. Em um desenho imaginário feito com o dedo, ele diz que o espectro de ideologias que vai da esquerda à direita não é uma linha reta que sai do centro e vai de um ponto até o outro, mas, sim, um círculo. Quanto mais radical for o representante da direita e o da esquerda, ambos os lados saem do meio para se encontrar ao fim de uma circunferência. “Eu fico aqui, no meio”, explica Shelby, pontuando o centro do desenho. A posição não diz respeito a um viés moderado, mas, sim, ao modus operandi daqueles que podem pender para um lado ou para outro, conforme a conveniência. Assim, Shelby foi de mafioso envolvido em todo tipo de falcatrua ao posto de parlamentar na Câmara dos Comuns do Reino Unido, ascensão retratada na soberba Peaky Blinders, que chega ao fim com sua sexta temporada, já disponível na Netflix.
Peaky Blinders: A história real
Ambientada entre 1919 e 1934, a série criada pelo inglês Steven Knight transformou de maneira acachapante os moldes do drama de gangues. O banho de loja no visual dos mafiosos e a trilha sonora saborosamente anacrônica — com nomes como Nick Cave e Arctic Monkeys — emulam, por vezes, um videoclipe de rock. Na contramão de filmes como O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, ou de tantos outros do gênero feitos por Martin Scorsese, aqui a presença feminina é vigorosa. Mas é sobre seu mote assustadoramente atual que Peaky Blinders se sustenta. Na trama, o crime organizado evoluiu para o poder paralelo, acabou assimilado pelas instituições — da polícia à igreja —, até integrar o poder político legalizado: rota que encontra equivalentes em mafiosos europeus, supremacistas americanos e até milicianos brasileiros.
Da primeira temporada até o fim, a trajetória de Tommy Shelby foi movida, de um lado, pela ambição do personagem e, por outro, pelos reveses da história europeia. Quando entrou em cena pela primeira vez, Shelby trazia consigo a fama de herói da I Guerra. O homem de origem cigana e líder da gangue Peaky Blinders entra a cavalo num beco sujo de Birmingham, centro industrial da Inglaterra, e todos que cruzam seu caminho, de crianças a guardas, rendem-lhe reverência — ou se escondem, temerosos. Cansado da vida de pobreza, traumatizado e frio como um iceberg, ele se impôs como criminoso de respeito e alçou sua família ao âmbito dos intocáveis.
By Order of the Peaky Blinders
Do submundo das apostas até roubo de cargas preciosas, chegando ao tráfico de ópio, Shelby venceu inimigos tão inescrupulosos quanto ele. Na sexta temporada, o criminoso fica diante de alguém que lhe causa pavor: o aristocrata Oswald Mosley, figura real que fundou a União Britânica de Fascistas — um amigo próximo de Adolf Hitler e Benito Mussolini. Interpretado de forma assustadora por Sam Claflin, que alia charme, frieza e a prosódia dos especialistas em discursos de ódio, Mosley recruta Shelby para sua causa com o intuito de conquistar os eleitores da região central da Inglaterra, dominada pelo mafioso. O bandido, por sua vez, entra no jogo como um informante de Winston Churchill. Depois de causar tanto mal, perdendo amigos e familiares, Shelby quer fazer o bem — e combater o fascismo parece uma boa forma de expiar seus pecados. No caminho, porém, ele usa dessa relação para lucrar mais um pouco — enquanto manipula inimigos poderosos, de um mafioso americano até os terroristas do IRA.
Quadro Shelby Peaky Blinders Arte Poster Com Moldura
Integrantes com louvor do panteão de anti-heróis memoráveis da ficção, Tommy Shelby e sua família — que conta com personagens tão sedutores e perigosos quanto ele — enfrentaram um desafio nos bastidores. Helen McCrory, intérprete da tia Polly, a matriarca da família, a quem Tommy de fato respeita, morreu vítima de um câncer aos 52 anos, em 2021. A nova temporada foi rodada sem ela. Os roteiristas deram um jeito de transformá-la em uma presença quase que sobrenatural na história, capaz até de influenciar no destino do protagonista. Uma dupla despedida memorável.
Publicado em VEJA de 15 de junho de 2022, edição nº 2793
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