‘O Urso’: a segunda temporada da série que põe a gastronomia real na tela
Novos episódios mergulham ainda mais fundo no universo da cozinha, com brigas, choques de egos e tensões familiares
A cozinha dos Berzattos é o coração da família. De origem italiana, o clã se reúne na véspera de Natal para celebrar a Festa dos Sete Peixes, tradição do sul da Itália que se consolidou nos Estados Unidos com a chegada dos imigrantes. Entre panelas borbulhantes, gritos de comando e o tilintar do cronômetro, os irmãos Carmy (Jeremy Allen White), Natalie (Abby Elliott) e Michael (Jon Bernthal) pisam em ovos para lidar com a instabilidade da mãe, que conduz o banquete com mãos de ferro. Ambientada anos antes dos eventos da primeira temporada de O Urso, a reunião familiar nervosa conduz o episódio mais enérgico da segunda fase da produção — que chega ao Star+ na quarta-feira 23, ainda mais potente que a anterior.
Le Cordon Bleu: Todas as técnicas culinárias
Na nova leva de programas, Carmy, Natalie e a promissora Sydney (Ayo Edebiri) abraçam o ambicioso desafio de transformar a lanchonete falida legada a Carmy por Michael (o primogênito se suicidou) em restaurante renomado, capaz de conquistar uma cobiçada estrela do Guia Michelin. Embalada por brigas ferozes, muita burocracia e tensão acumulada equivalente a várias panelas de pressão prestes a explodir, a construção do The Bear, restaurante que dá nome à série, aprofunda o realismo notável da trama ao retratar o universo da cozinha, carregando com primor para a ficção um tema explorado exaustivamente em realities shows e programas culinários: a rotina quase nunca romântica (e sempre caótica) por trás do glamour da alta gastronomia.
Gênero adorado pelo público, os programas culinários se multiplicaram exponencialmente ao longo dos anos, com propostas diversas e versões em inúmeros países. Um dos pioneiros do gênero, o chef americano Anthony Bourdain (1956-2018) ganhou prestígio ao expor o lado indigesto (e por vezes até nojento) dos restaurantes esnobes no livro Cozinha Confidencial (2001), e depois estrelou programas devotados a apresentar um olhar mais social para a alimentação. Na outra ponta da mesa, atrações como Pesadelo na Cozinha, popularizado pelo chef britânico Gordon Ramsay, e no Brasil apresentado pelo francês radicado no país Érick Jacquin, acompanham os chefs palpitando, nem sempre de maneira delicada, sobre a estrutura, a gestão e a comida de restaurantes em ascensão ou tidos como problemáticos, nos quais tudo dá errado. Isso, é claro, sem falar do MasterChef e suas variações internacionais que se arrastam por longas temporadas, vertendo em competição nas telas a dinâmica frenética das cozinhas profissionais, onde a exigência do cliente é desproporcional (e como) ao tempo disponível para o preparo dos pratos.
Sabor: Minha vida através da comida
Se no universo da não ficção a gastronomia é estrela, nas tramas ficcionalizadas ela dificilmente é explorada ostensivamente. No geral, o tema acaba romantizado, como na popular Emily in Paris, em que o personagem Gabriel é um francês bonitão que vai de chef comum a dono de restaurante chique de maneira meteórica, ou ganha retratos mais pitorescos em produções como O Menu, filme em que a gastronomia serve de pano de fundo para uma cruzada soturna em que parte dos clientes vira refeição.
Cozinhar: Uma história natural de transformação
O Urso, felizmente, não envereda pelos caminhos mais óbvios: ao longo da série, o espectador é imerso em um ambiente de trabalho cheio de ansiedade, no qual o tique-taque do relógio é um inimigo “imparável” e a cozinha, um organismo vivo prestes a se incendiar em meio a uma profusão de comandos, ruídos repetitivos e sentimentos reprimidos. A nova temporada ainda introduz no caldeirão efervescente uma camada extensa de burocracia, revelando que gerir um restaurante vai além de viver à beira do burnout na cozinha — exige vistorias constantes, reformas e imprevistos que elevam a temperatura da mistura.
Chocolate amargo: Uma autobiografia
Tamanha imersão, é claro, só é possível graças a uma familiaridade com o dia a dia nas cozinhas. A trama de O Urso é do produtor americano Christopher Storer — que, antes de mergulhar na ficção, esteve à frente de uma série de produções sobre o universo culinário, incluindo documentários sobre os chefs americanos Thomas Keller e Roy Choi. Storer também é amigo de infância do cozinheiro Christopher Zucchero, cuja família é fundadora do Mr. Beef, restaurante de Chicago especializado em sanduíches de carne italiana que inspirou parcialmente a série. Sua irmã, Courtney Storer, também é chef profissional e faz as vezes de produtora culinária da série — é ela quem garante que os menus, as preparações e todo o processo que envolve o restaurante sejam mostrados de modo verossímil na tela. A trama culinária, no entanto, se revela ingrediente de algo maior: a luta dos Berzattos para lidar com o luto e superar a disfuncionalidade da própria família, que parece fadada ao fracasso. É uma receita explosiva — mas também deliciosa.
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2023, edição nº 2855
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