‘O Rei da TV’: a série que escancara o lado polêmico de Silvio Santos
Símbolo da TV brasileira é tema de atração do Star+ que expõe sem filtros suas ambições e idiossincrasias
Com um grave problema nas cordas vocais, Silvio Santos precisou se afastar de seu programa no SBT em 1988 para se tratar nos Estados Unidos. Com receio de que os anunciantes reclamassem, um executivo da emissora sugeriu que Gugu Liberato (1959-2019) assumisse temporariamente o lugar do apresentador. O titular deveria abençoar o pupilo ao vivo. Mas, temendo ser superado por um “novo Silvio Santos”, tomou uma das inúmeras decisões impulsivas de sua carreira: anunciou de supetão que poria no ar reprises do Programa Silvio Santos, escanteando Gugu — que só teria seu lugar nos domingos do SBT mais tarde, após ser cortejado pela Globo. A vaidade, a obsessão por controle, a intuitividade impulsiva: particularidades folclóricas de Silvio emergem sem censura em O Rei da TV, série biográfica não autorizada que detalha a construção de seu império e estreia no Star+ nesta quarta-feira, 19.
O programa acompanha Senor Abravanel desde a infância humilde do filho de imigrantes judeus da Grécia e da Turquia, passando pela juventude como camelô, o trabalho como locutor de rádio e a administração de um circo, até sua consolidação como magnata da comunicação. Na primeira temporada (da qual VEJA teve acesso aos três primeiros de oito episódios), a trajetória do homem que resume a era romântica da televisão aberta no Brasil será mostrada até o fim dos anos 1980. Uma segunda leva de capítulos, já encomendada, tratará de sua história de lá para cá.
A produção escolhe uma trilha muito em voga na dramaturgia atual: a mesclagem de substrato factual com licenças poéticas capazes de dar ao pacote um colorido pop. Nessa toada, não resiste a certo romantismo típico de novelinha do SBT, com diálogos que incomodam pelo excesso de lugares-comuns. Também peca por simplificações implausíveis — como a de mostrar Silvio se curvando à autoridade de um executivo (fictício) da emissora que ele famosamente sempre geriu ao sabor de seu ego. Mas O Rei da TV compensa essas limitações com um artigo raro: a liberdade com que explora o lado B do ícone da televisão, das manobras controversas para ascender nos negócios às intercorrências de sua personalidade difícil.
A fantástica história de Silvio Santos
Em um país no qual até pouco tempo atrás as biografias eram passíveis de veto por seus personagens, é salutar que a televisão, seguindo os passos da tradição americana, se arrisque a narrar a história de uma figura importante — e ativa aos 91 anos — sem nosso renitente “chapa-branquismo”. Para os brasileiros familiarizados ao dono do bordão “Quem quer dinheiro?” não será surpresa conhecer o jovem ambicioso disposto a sacrificar o que quer que fosse para vencer. Silvio hipoteca uma imagem de santa do pai e passa a perna em outro ambulante para se fixar no ramo. A versão consagrada da história garante que o radialista Manuel de Nóbrega (1913-1976) deu o Baú da Felicidade para ele, mas a série sugere outra coisa: o apresentador teria aplicado um golpe no veterano para lucrar com o carnê.
No que diz respeito à vida pessoal, a série também busca desnudar o Silvio real por trás do sorriso. Expõe a forma como “escondeu” sua primeira esposa, Cidinha — mãe da primeira filha, Cintia, e com quem adotou o segundo rebento, Silvia —, para manter sua aura de galanteador junto ao público feminino. Vivida por Leona Cavalli, a segunda e atual esposa de Silvio, Íris Abravanel, e as outras quatro filhas surgem como as “preferidas” do empresário. Criador da série ao lado de Marcus Baldini e Ricardo Grynszpan, o jornalista André Barcinski explica que Silvio não teve nenhuma participação no projeto, baseado em falas e raras entrevistas do próprio para captar sua intimidade, além de conversas com pessoas que trabalharam com ele. “Silvio já declarou ter se arrependido de ter traído a Cidinha. Então, não são coisas que a gente tirou da cartola”, diz o produtor.
Topa tudo por dinheiro: as Muitas Faces do Empresário Silvio Santos
A iconoclastia por vezes derrapa, contudo, em lances duvidosos. A certa altura, Silvio tenta evitar a contratação de uma diretora por sua cor de pele. O apresentador foi acusado de racismo recentemente por menosprezar uma cantora negra num de seus concursos, e o caso da executiva da série é um amálgama de episódios assim — nunca, porém, existiu a situação concreta mostrada em cena. “Ele fala algumas barbaridades machistas, mas acho que não temos nem como julgar mais”, avalia José Rubens Chachá, que interpreta o personagem na maturidade e o divide na tela com Guilherme Reis (adolescência) e Mariano Mattos Martins (adulto). Silvio Santos está nu — mas continua incorrigível.
Publicado em VEJA de 19 de outubro de 2022, edição nº 2811
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