Em 1966, no auge do fervor destrutivo da Revolução Cultural na China comunista, a astrofísica Ye Wenjie (Zine Tseng) vê seu pai, um professor da mesma área, ser espancado até a morte por jovens revolucionários. Seu delito: não renegar as teorias de Albert Einstein, considerado — haja cegueira obscurantista — um aliado do imperialismo ocidental. Mais tarde, a própria Ye é perseguida, mas o regime maoísta a perdoa em troca de seus préstimos científicos para uma organização oficial envolvida numa missão singular. Enquanto Rússia e Estados Unidos lançavam-se na corrida espacial, a China, secretamente, queria ir além: buscava contato com forças extraterrestres. Essa hipótese fantasiosa, mas irresistível para a ficção, é explorada na série O Problema dos Três Corpos, que estreia seus oito episódios na próxima quinta, 21, na Netflix.
Com roteiro dos poderosos David Benioff e D.B. Weiss (dupla de Game of Thrones) e produção de Alexander Woo (True Blood), a trama lança luz sobre um fenômeno maior do entretenimento: a ascensão de uma nova ficção científica produzida na China — e aparentemente, mesmo contendo certas farpas políticas, tolerada e até estimulada pela ditadura de Pequim. A façanha cabe ao escritor Cixin Liu, criador do intrincado O Problema dos Três Corpos (2008) e dos dois livros que completam a saga até agora, A Floresta Sombria e O Fim da Morte. Neles, fala-se de um mote reciclado à exaustão na literatura, no cinema e na TV desde o clássico Guerra dos Mundos (1897), do inglês H.G. Wells: a ideia de um conflito iminente entre os humanos e ETs decididos a dominar a Terra. Cixin Liu, no entanto, consegue injetar frescor nessa premissa antiga ao dotá-la de sutileza, dilemas existencialistas e, principalmente, de uma base teórica engenhosa, que vai da mecânica quântica à inteligência artificial.
Adaptada com autorização de seu criador, a série da Netflix realça o elemento central da obra de Cixin Liu: a defesa do valor intrínseco da liberdade científica como guardiã, em última instância, da civilização. Logo no início de O Problema dos Três Corpos — título que se refere a um velho debate da física sobre a interação de forças gravitacionais —, a protagonista Ye Wenjie toma uma decisão solitária de altíssimo impacto. Desiludida com o ambiente de terror em seu país e a Guerra Fria, ela tem uma reação de desespero ao obter sucesso na comunicação com alienígenas por meio da imensa antena do laboratório governamental: mesmo alertada pelos próprios de que eles só viriam à Terra para nos dominar, ela insiste que venham. Após quase sessenta anos, a decisão desencadeia uma série de suicídios de cientistas em Londres, obrigando o agente antiterrorista Clarence Da Shi (Benedict Wong) a começar uma investigação conturbada por forças além de seu entendimento, que manipulam mentes através de um game ativado por um capacete misterioso. Famoso por interpretar o fiel escudeiro do Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch) no universo da Marvel, Wong dá vida ao detetive que precisa impedir o apocalipse. “A série nos obriga a fazer perguntas sobre a sociedade e o destino da humanidade”, explicou o ator a VEJA (leia abaixo).
Para dominar os humanos, enfim, os ETs sabotam os avanços científicos de estudiosos brilhantes. O enredo ganha toques perturbadores ao especular como uma parcela das pessoas se renderia aos aliens ao vê-los como divindades — uma clara alegoria sobre os perigos do fanatismo religioso e político. Cixin Liu, de 60 anos, sabe bem do que fala em sua obra. Nascido na província de Shanxi, onde ainda mora, e criado na Revolução Cultural, ele via seu pai esconder livros de mestres da ficção científica como Arthur C. Clarke por medo da repressão. Só na virada dos anos 1980, quando o comunismo chinês reviu sua visão sobre a ciência, é que eles foram aceitos. Engenheiro da computação, Liu temeu censura quando começou a escrever, mas garante que até hoje não sofreu represálias. Se chegassem hoje por aqui, nem os aliens duvidariam que suas obras são um negócio da China.
“É uma série corajosa”
Famoso como personagem da Marvel, o inglês Benedict Wong fala a VEJA sobre O Problema dos Três Corpos e suas mensagens políticas:
O que pensou ao ler o roteiro de uma série tão cheia de complexidades científicas? Vi algo de magnitude. É uma série que nos obriga a fazer perguntas sobre os dilemas da sociedade e o destino da humanidade.
Como descendente de chineses, como vê a citação da Revolução Cultural? Acho muito corajosa. Mostra o período de forma sensível. A trama foi criada por um chinês, claro, mas é universal: uma jovem vê seu pai ser morto e quer mudar o mundo.
Qual a motivação de seu personagem, Da Shi? Ele é um agente brilhante que atua contra o terrorismo, quer ajudar as pessoas — mas é um péssimo pai.
Como foi interpretar um homem comum em vez de um herói da Marvel? Foi legal e revigorante, para ser sincero.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2024, edição nº 2884