Em 1914, o ex-presidente americano Theodore Roosevelt (1858-1919), então aos 55 anos, se embrenhou pela Floresta Amazônica no norte de Mato Grosso. A aventura ao lado do marechal Cândido Rondon (1865-1958), explorador brasileiro de sangue indígena, tinha o intuito de catalogar espécies e mapear um rio inexplorado, batizado sugestivamente de Rio da Dúvida. Acostumado a safáris e viagens com pouco conforto, Roosevelt sabia lidar com perrengues. A Amazônia, porém, foi um desafio excruciante. “O mundo selvagem no Brasil me tirou dez anos de vida”, diria ele sobre a experiência de dois meses. A constatação não era uma lamúria de arrependimento, mas quase uma bravata: a Expedição Científica Roosevelt-Rondon foi, apesar de muitos pesares, bem-sucedida e seria lembrada pelo americano como um grande feito em seu invejável currículo.
Tema de diversos livros, entre eles um da pena do próprio Roosevelt, Through the Brazilian Wilderness (Na Selva Brasileira), a viagem agora conduz à envolvente minissérie O Hóspede Americano, que estreia às 23 horas do domingo 26 no canal HBO e no HBO Max. Dirigido pelo brasileiro Bruno Barreto, com roteiro do inglês Matthew Chapman, o drama em quatro episódios relega os mistérios da floresta a papel coadjuvante. Em vez disso, prioriza os dilemas humanos, desde a insignificância do homem perante a natureza até o questionamento do conceito que atrela a valentia aos excessos da virilidade. Roosevelt (o americano Aidan Quinn) e Rondon (Chico Diaz, ótimo) são apresentados em solo brasileiro e optam por explorar o Rio da Dúvida quando ele se revela a única opção em aberto: Roosevelt se surpreende diante do avanço do país no mapeamento local, progresso para o qual Rondon foi um colaborador decisivo. Os dois se tratam com um respeito protocolar, até surgir a inescapável disputa por poder. Exemplo dos estereótipos da masculinidade, que vão da beligerância à rigidez nos modos, a dupla trava um embate sutil graças, especialmente, à conduta cortês de Rondon. Roosevelt eventualmente percebe que a mansidão do colega brasileiro é fruto de um autocontrole descomunal — qualidade que ele terá de aprender.
Responsável por verter diversas áreas nos Estados Unidos, como o Grand Canyon, em parques nacionais, o ex-presidente e herói de guerra tinha um lado feroz que destoava de seu discurso de tolerância e proteção ao meio ambiente. Com espingarda em punho, ele caçou em solo brasileiro diversos animais para catalogação científica e alimentação, mas também o fez por esporte: gabou-se ao realizar o sonho de matar uma onça-pintada. A carnificina ficou fora da minissérie, mas é uma constante no diário de Roosevelt — ele descobriria no Brasil que seus piores inimigos, os mosquitos, não sucumbem às armas. A postura belicosa se repete diante dos índios: ao menor indício de ser atacado, ele alerta dizendo que vai atirar primeiro.
Rondon, em contraste, é um defensor da convivência pacífica com os nativos — e tenta abaixar a espingarda do turrão Roosevelt em sinal de rendição. O que nem sempre dá certo: num episódio, leva uma flechada por culpa do americano. O brasileiro, contudo, também tem sua cota de brutalidade: ele chicoteia um dos soldados por roubar comida quando os mantimentos são racionados. “Eram homens complexos e cultos. Sensíveis, mas com monstros dentro de si”, diz Barreto.
Pensado inicialmente para um filme, o roteiro se expandiu quando o cineasta quis se aprofundar no passado de Roosevelt: a trama se divide entre as adversidades rio adentro e a carreira do protagonista. Alçado a presidente em 1901 com o assassinato de William McKinley, de quem era vice, Roosevelt foi reeleito e continuou no cargo até 1909. Desiludido com o Partido Republicano, ele concorreu mais uma vez, como dissidente — e perdeu. Na campanha, sofreu um atentado, e veio ao Brasil com a bala alojada em si. Na expedição, sobreviveu à malária e a uma cirurgia ao ar livre, em decorrência de uma ferida na perna. Perdeu 23 quilos e ficou com saúde frágil até sua morte, em 1919. Rondon continuou sua saga exploratória e o trabalho com indígenas, cerne da atual Funai. O Rio da Dúvida foi rebatizado como Roosevelt — e é um testemunho do encontro desses dois corações selvagens.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2021, edição nº 2757