Documentário da HBO destrincha movimento conspiracionista ‘QAnon’
'Q: Por Dentro da Tempestade' investiga organização online de extrema-direita que propaga teorias falsas pró-Trump e estimulou invasão do Capitólio

Em meados de 2017, o então presidente americano Donald Trump convida jornalistas para tirar uma fotografia na Casa Branca. Ao lado do chefe de estado e de sua mulher, Melania Trump, há diversos militares e suas respectivas esposas sorridentes. Trump enche o peito para tecer elogios ao grupo e fala que dentro daquela sala estavam os melhores militares do mundo. Por fim, alerta a todos que aquilo era a “calmaria antes da tempestade”.
Horas depois, na internet, dentro de um fórum com milhares de anônimos, uma pessoa intitulada simplesmente “Q” começa a publicar mensagens enigmáticas, falando sobre tempestade e calmaria, com muitas perguntas sem respostas – e repletas, claro, de teorias conspiratórias. Assim despontou o QAnon, movimento conspiracionista liderado por uma figura de identidade desconhecida e que provoca frêmitos nos radicais da extrema-direita. Anos mais tarde, mais exatamente no dia 6 de janeiro de 2021, o mundo constatou o perigo representado por aquele culto á loucura e à desinformação: o QAnon ficaria mundialmente conhecido por seu envolvimento na invasão do Capitólio por hordas trumpistas.
Uma nova série da HBO, Q: Por Dentro da Tempestade, lançada na noite de domingo 21 e composta de seis episódios, destrincha as origens e conexões do grupo, desde sua massa de seguidores fanáticos (e em sua maioria cristãos) até os QTubers, youtubers que disseminam a palavra desse personagem Q. Ilumina, ainda, o submundo dos fóruns de conversas anônimas da extrema-direita, como o 4Chan e o 8Chan, de onde as mensagens do líder são propagadas.

O primeiro episódio do documentário investiga a figura de seu líder: a letra “Q” vem de “Autorização Q”, que equivale ao nível máximo de segurança para os funcionários do Departamento de Energia dos Estados Unidos – departamento que cuida de todo o arsenal nuclear americano. Ele, ela, ou eles – há quem especule que o líder do QAnon poderia ser até mesmo o ex-presidente americano Donald Trump, ou seu ex-estrategista Steve Bannon, ou uma equipe de militares coordenada por Trump.
A principal premissa conspirativa propagada pelo grupo é a seguinte: uma sinistra e aterrorizante aliança – de que participam líderes democratas americanos, como Hillary Clinton e Barack Obama – uniria políticos, milionários e outros poderosos em uma associação internacional voltada às práticas de pedofilia, satanismo, canibalismo e tráfico sexual de crianças. O supra-sumo dessa teoria maluca é que eles fariam isso diretamente do porão de uma pizzaria, o que ficou conhecido como “pizzagate”. Segundo os QAnons, como são chamados seus seguidores, o único homem com o poder de desmascarar e prender esses criminosos e estabelecer a paz mundial seria Trump.
Com o apoio do ex-presidente, que nunca renegou o grupo e ainda o estimulava, reproduzindo a conspiração por meio de suas redes sociais (antes de ser bloqueado nelas), o grupo conseguiu sair das salas de conversa em fóruns na internet e entrou em redes sociais poderosas como o Twitter, que no fim de julho de 2020 anunciou medidas duras contra usuários que fizessem referência às fake news do QAnon, fechando 7 000 contas. Segundo o jornal britânico The Guardian, há mais de 170 grupos, páginas e contas do QAnon no Facebook e Instagram. O FBI classificou o movimento como uma potencial ameaça terrorista doméstica. E este ano, eles conseguiram chegar ao poder: elegeram a congressista Marjorie Taylor Greene, assumidamente uma seguidora de “Q”.

Assistindo ao documentário, não há como não perceber curiosas similaridades com o Brasil do presidente Jair Bolsonaro. Por exemplo, os seguidores de “Q”, que em sua maioria são cristãos fervorosos, usam a famosa frase que elegeu Bolsonaro, “Deus acima de todos”. O que os diferencia é a continuação dela: “E Trump vem logo em seguida”, afirma um dos QAnons. Além disso, o número tido como da sorte pelos conspiradores é o 17, pois a letra Q é a décima sétima no alfabeto. Trump, inclusive, quando ganhou uma camiseta de um time de basquete americano, escolheu o número 17. Bolsonaro também foi eleito pelo 17 do PSL, hoje seu ex-partido.
Coincidências? Talvez, sim. Mas, como o próprio “Q” disse em uma de suas primeiras postagens: “Nada é por acaso, não existem coincidências”. O grupo chegou ao ápice de sua influência em janeiro deste ano, na invasão no Capitólio – o ator Jake Angeli, o homem vestindo uma pele animal e chapéu com chifres que virou a marca do triste episódio, é um QAnon assumido. Segundo os seguidores do grupo, aquele dia seria conhecido como “O Grande Despertar”, quando os democratas do alto escalão seriam presos por comandar a rede global de tráfico sexual e Trump iniciaria o segundo mandato.
Felizmente, os malucos mal-intencionados do QAnon deram com os burros n’água. Trump se refugiou na Flórida, Biden foi consagrado o 46º presidente dos Estados Unidos e ovacionado por Barack Obama e Hillary Clinton livres. Os apoiadores de “Q” se dividiram nas redes e muitos se perguntaram se foram enganados. Mas não se iluda: o documentário, exibido aos domingos às 23h, traz sérios indícios de que o grupo não ficará adormecido por muito tempo.