Caubóis machões estão em baixa na nova era dos faroestes
De 'Yellowstone' a 'Vingança & Castigo', gênero recupera figuras históricas esquecidas e pôe em xeque as noções de masculinidade do filão
Astro absoluto dos faroestes, John Wayne (1907-1979) escolhia papéis que se enquadrassem em seu conceito de “homem de verdade”. A definição de Wayne para o tipo até hoje marca o imaginário americano. “Homens devem ser fortes, justos e corajosos, não devem procurar brigas — nem recuar quando elas surgem”, pontificava o ator, que, ao lado de Clint Eastwood e Henry Fonda (1905-1982), compôs a tríade de ouro do gênero na Hollywood dos anos 50 e 60. John Dutton, protagonista da série Yellowstone, decerto concordaria com a descrição de Wayne — mas só da boca para fora. Vivido por um Kevin Costner de voz gutural, Dutton mantém as aparências de caubói do Velho Oeste em pleno século XXI — ora andando a cavalo por seu rancho em Montana, ora administrando a propriedade do conforto de seu helicóptero. Ao mesmo tempo, o poderoso Dutton é a negação viva do arquétipo do “Homem Marlboro”: seu senso de força, justiça e coragem é usado em benefício próprio — e ele reage com dissimulação odiosa com quem o ameaça.
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Em sua quarta temporada, Yellowstone, disponível na plataforma Paramount+, é um raro exemplar de série que, no boca a boca, conquistou crítica e público — da terceira para a quarta temporada, o drama de tom folhetinesco e armas de fogo abundantes aumentou em 81% sua audiência nos Estados Unidos. Recentemente, a trama ganhou um derivado, 1883, também da Paramount, que acompanha, sob a óptica feminina, a peregrinação dos ancestrais da família Dutton para desbravar as planícies americanas em busca de um local onde se estabelecer. Ambas as séries são expoentes de um curioso movimento revisionista: na TV e no cinema, está em voga um novo faroeste. Ao resgatar personagens do Oeste americano real esnobados pela ficção — como negros, indígenas e mulheres —, ele areja o gênero com uma pertinente perspectiva contemporânea. E põe em xeque ideais sobre poder, possessividade e, claro, a masculinidade tóxica do filão.
O longa-metragem Ataque dos Cães, da Netflix, é um esforço irretocável dessa desconstrução da figura do caubói. Inspirado no livro de Thomas Savage, o filme, estrelado por Benedict Cumberbatch e dirigido por Jane Campion, evidencia a opressão de um mundo em que o selo de macho é arma traiçoeira: ela tanto fere o próprio protagonista, obrigado a reprimir sua homossexualidade, quanto alimenta a ira com que ele destrói vidas a seu redor. Também é notável a ideia de Vingança & Castigo, outro filme da Netflix: sua trama se apropria dos clichês do gênero, com seus bordéis, tiroteios e muita poeira, mas põe em cena pessoas negras do passado ofuscadas pela narrativa oficial. O elenco robusto, com Idris Elba, Regina King e Jonathan Majors, dá liga notável a essa premissa criativa.
Parte intrínseca de Hollywood desde seus primórdios, os faroestes ajudaram a definir os Estados Unidos como nação. Valores como a coragem, a integridade e a determinação moldaram um imaginário de orgulho e superioridade moral que ajudou os americanos na travessia dos tempos duros da II Guerra e início da Guerra Fria. Mas a divisão maniqueísta do mundo em vilões e mocinhos não resistiu ao tempo — e à realidade.
O mito do caubói começou a ser questionado ainda nos anos 60, com a explosão do spaghetti western, subgênero rodado na Itália por seu baixo custo e que bebeu do sentimento geral de reconstrução no pós-guerra. Inspirado nos samurais de Akira Kurosawa, o cineasta Sergio Leone criou faroestes nos quais o protagonista já não era uma fortaleza moral inabalável — seu anti-herói característico era o Clint Eastwood da Trilogia dos Dólares, um pistoleiro desencantado e que fazia justiça com as próprias mãos. No século XXI, Quentin Tarantino, um fã do gênero, abriria caminho ao resgate dos bangue-bangues com filmes como Django Livre (2012).
Os novos faroestes radicalizam o revisionismo desencadeado por Tarantino. Para além dos estereótipos de gênero e raça, demolem a visão da terra sem lei. Sim, havia violência e embates covardes com a população nativa, mas os filmes e séries atuais mostram que a ocupação territorial dos Estados Unidos foi norteada por um acordo político entre o presidente Abraham Lincoln (1809-1865) e agricultores que conquistavam a posse de suas propriedades ao cultivá-las. A expansão atraiu estrangeiros e logo trouxe regras, como a proibição do porte de armas. Não obstante, desbravar o Oeste foi um desafio mortal em razão de ameaças que iam de mercenários a animais peçonhentos. Essas durezas da conquista, aliás, são o fio condutor de 1883 — que inova ao ser narrada por uma mulher. Elsa Dutton (Isabel May) é fictícia, mas representa as muitas figuras femininas que carregavam consigo habilidades variadas, desde conduzir o gado até empunhar uma espingarda quando necessário.
Yellowstone se revela o exemplar mais curioso dessa leva. O seriado é chamado de Succession republicana — em suma, bebe da série da HBO sobre a família do magnata da mídia Logan Roy, mas expõe uma visão de mundo conservadora (para não dizer trumpista). Yellowstone, de fato, repete parte da fórmula de Succession: o ricaço John Dutton treina seus quatro filhos para manter o legado da família. Mas os herdeiros não se mostram confiáveis, e o caubói se vê cercado de inimigos: uma reserva indígena, um empreendimento imobiliário e o parque nacional de mesmo nome da série — todos querem uma lasquinha de suas terras. Não é a perda de hectares, no entanto, que de fato o assusta. Dutton teme o fim do estilo de vida do caubói livre, que por mais de um século representou a quinta-essência do sonho americano. Os novos ares do Oeste, no entanto, são inescapáveis.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2022, edição nº 2775
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