Meses atrás, quando a novela Vai na Fé foi delineada, a autora Rosane Svartman e seus colaboradores imaginavam que a mocinha evangélica Sol, vivida por Sheron Menezzes, terminaria com um par perfeito: o sensível advogado Ben, vivido pelo então desconhecido ator sergipano Samuel de Assis. A equipe da trama das 7 da Globo dispunha, porém, de um plano B: se Ben não empolgasse o público, perderia a vez para um mocinho popular e certeiro, o cantor brega Lui Lorenzo, papel de José Loreto. A heroína até teve um affair com o fortão, mas retomou seu namoro de adolescência com Ben quando a trama já estava avançada (no 120º capítulo, uma enormidade para desenlaces românticos em folhetins). O que aconteceu a seguir foi impressionante: o casal negro explodiu na tela e nas redes, ampliando o fenômeno de audiência das 7. Nascia assim o mais novo galã nacional — posto que o próprio Assis nunca tinha sonhado em ocupar. “Eu não tenho o corpo do Cauã Reymond, não sou branco nem tenho olhos verdes. Então, não me via nesse lugar”, disse ele a VEJA.
A telenovela e o futuro da televisão brasileira
O triunfo de Samuel de Assis, de 41 anos, tem uma simbologia importante. Por décadas, a presença dos negros na dramaturgia televisiva do país teve lacunas vexaminosas: afora a presença pontual de rostos como Milton Gonçalves e Zezé Motta, esses atores viam-se fadados a papéis subalternos, como de empregada ou motorista. Demorou muito para virarem protagonistas. A primeira mocinha na faixa das 9 só veio em 2009, quando Taís Araujo se tornou uma Helena de Manoel Carlos em Viver a Vida — e, ainda assim, sofreu para superar a rejeição.
Basta um instantâneo do horário nobre hoje para verificar que a representatividade, enfim, é uma realidade. A trama das 6 da Globo, Amor Perfeito, tem um ator negro como galã, Diogo Almeida. Barbara Reis vive uma empoderada heroína em Terra e Paixão, novela das 9 de Walcyr Carrasco. Maior sucesso dos últimos tempos da emissora, Vai na Fé chega ao fim na sexta-feira, 11, com o troféu mais vistoso da nova diversidade: um casal de protagonistas negros. Eles estão longe de ser os únicos em cena, aliás: mais da metade do elenco do melodrama tem pele negra.
O fascismo da cor: Uma radiografia do racismo nacional
Em meio a tantos feitos, a história de Samuel de Assis resume o alcance das mudanças em curso na TV e na sociedade. Filho de pais divorciados — um coronel da PM sergipana e uma costureira —, Samuel foi levado pela madrasta quando criança a um centro espírita. Lá, teve seu primeiro contato com o teatro amador e estrelou sua primeira peça, aos 12 anos. “Foi a primeira vez que eu subi num palco. Quando terminou, chorava igual a um bebê”, diz. Ao voltar para casa, afirmou que seria ator. O pai, Francisco, achava ser fogo de palha, mas nunca deixou de apoiar o filho.
Antes de chegar à Globo, Assis trilhou uma rota alternativa. Pouco depois de se mudar de Aracaju (SE) para São Paulo, foi assistir a uma peça no Teatro Oficina. Com 20 anos e uma leve timidez, quase paralisou ao ser chamado pelo dramaturgo Zé Celso (1937-2023) para assistir ao espetáculo das coxias. “Ele me viu na plateia e me convocou para ficar ao lado dele. Disse que só se aprende a ser ator atuando, e me convenceu a entrar no Oficina”, relembra.
Medida provisória – Diário do diretor
Depois do teatro, Assis se converteu ao candomblé e estreou na TV em Ciranda de Pedra (2008). De lá para cá, fez peças e personagens pequenos, até conquistar um papel de destaque: o segurança gay Kevin de Rensga Hits, série do Globoplay que estreia sua segunda temporada em 21 de agosto. Na produção, ele vive o amante de Deivid Cafajeste (Alejandro Claveux), sertanejo que se finge de mulherengo mas é homossexual. Os dois protagonizaram cenas quentes no primeiro ano, fato curioso que contribui para o fascínio sobre a vida pessoal do ator, que faz questão de manter sua privacidade. “Não falo da minha vida íntima, e o público segue me acompanhando. Pouco importa quem me acha X, Y ou Z”, diz.
Carismático e dono de um humor contagiante, ele de fato mostrou como se atinge a unanimidade em Vai na Fé. Isso, mesmo relutando em achar que poderia virar galã, por causa da cor de sua pele. “Eu nunca tinha me visto nesse lugar nem sabia que podia ocupá-lo. Demorei 40 anos para me achar bonito”, conta. Estrela de peso da Globo e pioneiro astro negro das novelas, Lázaro Ramos celebra o progresso histórico da televisão com o sucesso de Assis. “É muito bonito vê-lo chegar ao protagonismo”, elogia. Ninguém segura esse mocinho.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2023, edição nº 2853
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