Quando o fascista grita ‘fascista!’
Na manhã do último sábado eu estava em Cachoeira, na Bahia, como convidado da Flica, a bonita festa literária local, quando o recém-iniciado debate entre o sociólogo Demétrio Magnoli (foto) e a cientista social Maria Hilda Baqueiro Paraíso foi interrompido por exaltados manifestantes “de esquerda” fantasiados de índios ou coisa parecida, aos gritos de “racista”, […]

Na manhã do último sábado eu estava em Cachoeira, na Bahia, como convidado da Flica, a bonita festa literária local, quando o recém-iniciado debate entre o sociólogo Demétrio Magnoli (foto) e a cientista social Maria Hilda Baqueiro Paraíso foi interrompido por exaltados manifestantes “de esquerda” fantasiados de índios ou coisa parecida, aos gritos de “racista”, “fascista” e outros mimos.
A organização do evento optou por cancelar a mesa, alegando não ter como garantir a segurança dos palestrantes – e, diante de ameaças de violência física, estendeu a suspensão ao debate marcado para aquela noite entre o ensaísta Luiz Felipe Pondé e o sociólogo francês Jean-Claude Kaufmann.
O episódio me fez ficar matutando sobre as palavras fascismo e fascista. Não é de hoje que me incomoda o barateamento de seu sentido original, o esvaziamento de conteúdo histórico que, nas últimas décadas, as leva a enfeitar ofensas variadas a quem não pensa como o acusador, e não apenas no campo político – quase como se o termo fascista fosse intercambiável com “bobo” e “feio” numa briga de crianças.
A luz vermelha da perda de fio da linguagem se acendeu para mim quando, no início deste século, um professor de filosofia chamou publicamente o compositor Caetano Veloso de fascista – e ressalte-se que a polêmica das biografias ainda nem raiava no horizonte. Caetano pode ter muitos defeitos, mas acusá-lo de fascismo é, além de ridículo, nocivo. Conduz à geleia conceitual e ao esquecimento daquilo que foi de fato o fascismo, algo que deveríamos lutar com todas as forças para nunca esquecer.
O termo ganhou seu primeiro registro em português em 1921 nas páginas da revista “A Cigarra”, segundo a datação do dicionário Houaiss. Vinha da Itália, onde, apenas dois anos antes, Benito Mussolini tinha fundado o movimento fascista – uma palavra derivada do italiano fascio, “liga, associação política e sindical”, e portanto herdeira do latim fascis, literalmente “feixe, molho” e, por extensão, “grupo, ajuntamento”.
Com sua exaltação do nacionalismo, do estatismo, da unidade e de valores comunitários, seu recurso à violência sistemática e outras ações à margem da legalidade, o fascismo inspirou o surgimento, logo em seguida, do nazismo alemão, do qual é quase – mas não inteiramente – um sinônimo. Todo mundo sabe onde isso deu.
Talvez fosse inevitável que, após a derrota, na Segunda Guerra, dos regimes erigidos em seu nome, a palavra fascismo fosse ficando meio pastosa, vaga, burrinha. No verbete fascism, o dicionário etimológico de Douglas Harper faz piada com a exacerbação dessa tendência, dizendo que o termo é “aplicado a todo mundo desde o surgimento da internet”.
Em Cachoeira, porém, ficou claro que o parafuso tinha dado mais uma volta. Ninguém precisa concordar com as ideias de Magnoli e Pondé para reconhecer o óbvio: se havia pessoas próximas do fascismo ali, eram aquelas que, num fascio, isto é, “grupo, ajuntamento”, agiam com violência e à margem da legalidade para calar seus adversários. Ou seja, fascistas eram os que gritavam “fascista!”. Assim se constrói a novilíngua.