O Inmetro ‘decreta’: quilo agora é kilo! Pode?
“Bom dia, Sérgio. Sou fã de sua ótima coluna! Seguinte: chegou-me às mãos um pdf do Inmetro declarando que o Brasil aderiu ao padrão internacional, inclusive no que se refere à grafia ‘kilo’. Estaria correta, portanto, a expressão ‘comida por kilo’. Minha questão: QUEM é autoridade para definir isso? Inmetro ou o VOLP/ABL? O VOLP […]
“Bom dia, Sérgio. Sou fã de sua ótima coluna! Seguinte: chegou-me às mãos um pdf do Inmetro declarando que o Brasil aderiu ao padrão internacional, inclusive no que se refere à grafia ‘kilo’. Estaria correta, portanto, a expressão ‘comida por kilo’. Minha questão: QUEM é autoridade para definir isso? Inmetro ou o VOLP/ABL? O VOLP não relaciona essa forma. Abraços.” (Evandro Weingärtner)
Evandro tem razão: o tal documento do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) encontra-se comicamente fora de sua jurisdição ao afirmar que está introduzindo – o verbo é esse mesmo – a “mudança da grafia do prefixo quilo para kilo e, consequentemente, do nome da unidade de massa quilograma para kilograma”.
A marra ortográfica do documento lançado em 2012 (e disponível para consulta no site do Inmetro, aqui) tem sido devidamente ignorada há quase três anos por quem de fato pode legislar sobre a língua. Normal, pois se trata de um tiro de festim. Tanto o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) da Academia Brasileira de Letras quanto os dicionários continuam registrando apenas as formas “quilo”, “quilograma”, “quilômetro” etc.
O tal documento é a tradução autorizada da 8.a edição (de 2006) do Sistema Internacional de Medidas. Até aí, tudo certo. O problema é que, já na introdução assinada pelo presidente do instituto, João Alziro Herz da Jornada, ficam evidentes os erros de avaliação – e de processamento de informação – que provocaram a derrapada.
Jornada diz que a mudança se baseia “na reinserção das letras k, w e y no alfabeto português (Anexo 1, Base 1, 2° parágrafo, Alínea C do Acordo)” e acrescenta que “o Acordo cita, na mesma Alínea, como exemplo desta nova grafia, a unidade kilowatt”.
O primeiro erro é supor que a integração da letra k ao alfabeto bastaria para que uma palavra consagrada na linguagem comum como “quilo” virasse “kilo”, apagando séculos de história da língua. Trata-se de um delírio tecnocrático. Obviamente, a possibilidade do uso do k – em “casos especiais”, segundo o Acordo Ortográfico – não significa sua obrigatoriedade. “Caratê” não passou a ser grafado karatê, o esqui não virou eski etc.
O segundo erro, ainda mais embaraçoso, é acreditar que, se fosse o caso de revisar a grafia de “quilo” à luz da nova ordem ortográfica, tal trabalho ficaria a cargo do… Inmetro! Como a coisa pegou mal, um funcionário do instituto, Paulo Roberto da Fonseca, veio a público para contemporizar: “A mudança não será compulsória, admitindo-se a dupla grafia”. Errado, não há dupla grafia nenhuma: o aluno que escrever “kilograma” na redação vai levar canetada vermelha, e de nada adiantará invocar o Inmetro nessa hora. Ortografia é uma coisa, metrologia é outra.
Como atenuante, reconheça-se que o texto do AO (aqui, em pdf), ao tratar do uso do k “em siglas, símbolos e mesmo em palavras adotadas como unidades de medida de curso internacional” (o grifo é meu), cita realmente entre as últimas “kilowatt”, dando margem a certa confusão.
É provável que o faça por ser kilowatt um termo de uso técnico, muito distante da corrente principal da língua. No caso de palavras menos difundidas ou mais recentes, dicionários podem registrar tanto a forma aportuguesada quanto a estrangeira – isso ocorre com “quilobaite” e kilobyte, por exemplo.
De todo modo, não poderia ser mais significativo que na mesma linha do texto do Acordo, a propósito do símbolo “kg”, apareça um explícito “quilograma”.
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