O humorístico e o ‘piadético’
Há cerca de um ano e meio, a propósito da morte do grande Chico Anysio, tratei aqui na coluna da origem da palavra “humor”, que por incrível que pareça nasceu com sentido fisiológico. Disse então o seguinte: Parece piada, mas é verdade: a palavra veio do latim humor com sentido médico. Na Antiguidade o humor […]
Há cerca de um ano e meio, a propósito da morte do grande Chico Anysio, tratei aqui na coluna da origem da palavra “humor”, que por incrível que pareça nasceu com sentido fisiológico. Disse então o seguinte:
Parece piada, mas é verdade: a palavra veio do latim humor com sentido médico. Na Antiguidade o humor era apenas – como ainda é, em acepção menos corrente – um sinônimo de fluido corporal. Até a Idade Média acreditava-se que o corpo humano fosse regido pela combinação de quatro humores, que deviam ser bem balanceados para que a pessoa não se tornasse, pendendo para um deles, colérica, sanguínea, fleumática ou melancólica.
Foi a princípio no inglês que, entre os séculos XVI e XVII, deu-se uma primeira ampliação de sentido – humor como sinônimo de temperamento, disposição, estado de ânimo – e em seguida mais uma: temperamento brincalhão, boa disposição, estado de ânimo alegre, em processo semelhante ao que levou substantivos como êxito e qualidade a incorporar respectivamente os sentidos de bom êxito e boa qualidade, tornando dispensáveis os adjetivos. O que era bom humor virou humor só.
Pois bem: às vezes, quando estou de mau humor, gosto de recorrer à produção intelectual dos puristas, tipos estranhos que lutavam (justifica-se o verbo no passado, pois hoje eles só sobrevivem no reino da caricatura) para proteger a língua portuguesa de toda influência estrangeira, baseados numa ideia de inocência e pureza que nunca havia existido fora de suas cabeças.
Veja-se por exemplo o que diz sobre o adjetivo “humorístico” o português Vasco Botelho de Amaral em seu “Dicionário de dificuldades da língua portuguesa”, de 1938:
Anglicismo já criticado por Camilo em “O Bem e O Mal”, pág. 31, 4a edição: “…espírito faceto ou humorístico, segundo agora francesmente se diz”. O autor escreve “francesmente” porque a palavra se propagou em Portugal por via francesa.
Vasco recomenda a substituição de “humorístico” por um dos seguintes sinônimos: “gracioso, chistoso, piadético, jovial etc.” É ou não é dado a jogos piadéticos esse gajo?