‘Como lhe aprouver’ – isso existe?
“Costumo ver em convenções e regulamentos de condomínios residenciais as palavras APROVER e APROUVER, como sinônimas e significando o que você mesmo pode deduzir da leitura da seguinte frase tirada de um desses documentos (que são registrados em cartório e têm valor de lei): ‘Usar, gozar e dispor de sua unidade (apartamento, casa, lote) como […]
“Costumo ver em convenções e regulamentos de condomínios residenciais as palavras APROVER e APROUVER, como sinônimas e significando o que você mesmo pode deduzir da leitura da seguinte frase tirada de um desses documentos (que são registrados em cartório e têm valor de lei): ‘Usar, gozar e dispor de sua unidade (apartamento, casa, lote) como lhe APROUVER (ou APROVER), respeitadas, entretanto, as estipulações da Convenção (ou Estatuto) do Edifíco Condomínio X e deste Regulamento Interno’. Minha aposta é que essas palavras não existem. Estou certo?” (Gilberto Custodio de Camargos)
A dúvida de Gilberto é interessante. Sim, “aprouver” existe (enquanto “aprover” é apenas um erro de ortografia). Trata-se da conjugação na terceira pessoa do futuro do subjuntivo do verbo “aprazer”, que significa agradar, dar prazer. Quando o texto citado acima enuncia “como lhe aprouver”, está querendo dizer “como lhe for mais agradável ou prazeroso”, o que, adaptado para uma fórmula popular, traduz-se no fim das contas por “como quiser, como bem entender”.
O fato de “aprouver” soar estranho aos ouvidos do leitor – e de muita gente – deve-se a uma combinação de dois fatores. O primeiro é que “aprazer”, respeitável verbo existente no português desde que nosso idioma engatinhava, no século 13, já não aparece com tanta frequência na linguagem cotidiana. O adjetivo aprazível, isto é, “agradável”, é seu derivado de maior circulação. Também se encontra de vez em quando uma construção como “isso me apraz”, mas normalmente em discursos de corte erudito.
(Quer dizer que a linguagem das convenções de condomínio é erudita? De certa forma, sim. Ela pertence a um ramo meio degenerado do registro erudito chamado linguagem bacharelesca, que usa – nem sempre com propriedade – fórmulas cunhadas pelo discurso jurídico. “Aprouver” entra aí como clichê, ideia feita, e talvez o redator nem saiba empregá-lo em outro contexto. É comum que palavras raras tenham vida próspera na bolha de um lugar-comum e jamais se aventurem fora dela: quantos de nós já teremos visto o adjetivo crasso, que significa grosseiro, ser usado longe do substantivo erro?)
A segunda e principal razão da estranheza provocada por “aprouver” é gramatical. Como aprazer é um verbo irregular, refazer mentalmente o caminho entre “aprouver” e sua forma infinitiva, a única que os dicionários registram, pode ser difícil. Some-se a isso o fato de aprazer ser um daqueles animais ariscos chamados verbos defectivos. Defectivo é o verbo que não pode ser conjugado em todas as formas. No caso de aprazer, é usado apenas na terceira pessoa – a menos que seja pronominal, “aprazer-se”, apresentando então conjugação completa.
Diante dessa confusão, o leitor estará desculpado se considerar “aprazer” um verbo pouco aprazível e preferir manter distância dele. Registre-se apenas, para encerrar, que alguns gramáticos modernos flagram uma evolução em seu uso e admitem como correta a conjugação regular: no caso do texto citado acima, isso resultaria em “como lhe aprazer” em vez de “como lhe aprouver”. Uma simplificação que sem dúvida facilita a vida do falante, mas com a qual, confesso, nunca esbarrei na vida real.