“A bunda, que engraçada”, já sabia Drummond. “Está sempre sorrindo, nunca é trágica.” Dividida ao meio, tem uma nádega apoiada na linguagem chula e a outra na mais cândida intimidade. Informal sempre, deve-se evitá-la em discursos educados: preferir um clínico glúteos, um anódino nádegas, um inocente traseiro, um tatibitate bumbum, um cômico fundilhos, um pândego pandeiro, um pedante derrière ou mesmo um regionalista tundá – entre outras opções disponíveis num vocabulário vasto.
Afinal, não estamos falando de um “nome feio”? O mais risonho e infantil dos palavrões, mas ainda palavrão? Bem, quase isso. Bunda é um vocábulo que ainda não entregou suas últimas reservas de crueza ao sistema – ao sistema da língua asséptica, polidinha, carimbada. A população brasileira em peso sabe que, no fundo, é bunda mesmo a palavra definitiva para aquele volume musculoadiposo que os seres humanos têm na parte de trás do quadril, em graus variados de proeminência, ao sul de quem é dono dela. Por que, então, o vocábulo conserva-se maliciosamente sorridente, como queria Drummond?
Trata-se de um brasileirismo de origem africana. Veio do quimbundo mbunda, “quadris, nádegas” (sentido que tem também em Angola), e tomou em nosso vocabulário sócio-erótico-anatômico um assento que em condições normais estaria reservado a um filho do latim culus, como ocorreu em Portugal. O pioneiro no registro do vocábulo originado no quimbundo foi o dicionário Constâncio de 1836, o que quer dizer que a bunda já devia saracotear por aí sem certidão de nascimento pelo menos desde o século 18.
Como curiosidade, registre-se o uso que o escritor Monteiro Lobato (foto) gostava de fazer da expressão pejorativa “língua bunda” para designar o português inculto falado pela maioria da população brasileira – em consonância com o sentido de “ordinário, de baixa qualidade” que a palavra conserva até hoje.
Num dos contos de “Urupês”, Lobato menciona jornais populares nos quais “se estampam em língua bunda as facadas que Pé Espalhado deu no Camisa Preta…”. A expressão volta a aparecer em sua correspondência com Godofredo Rangel, reunida em “A barca de Gleyre”, onde a escritora Ana Maria Gonçalves encontrou recentemente uma coleção de declarações abertamente racistas do criador de Narizinho – racismo que tudo indica estar também na origem da locução “língua bunda”.