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Por Sérgio Rodrigues
Este blog tira dúvidas dos leitores sobre o português falado no Brasil. Atualizado de segunda a sexta, foge do ranço professoral e persegue o equilíbrio entre o tradicional e o novo.
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A aguardente, a pinga e a mais idiota das lendas

“Engenho de cana”, pintura de Hercule Florence Circula pela internet, num número alarmante de páginas, uma história sobre a origem da cachaça – e das palavras aguardente e pinga – que exala um bafo de falsidade perceptível a quilômetros de distância. Desmascará-la é um serviço de utilidade pública, e não apenas em nome da etimologia. […]

Por Sérgio Rodrigues
Atualizado em 31 jul 2020, 05h37 - Publicado em 14 ago 2013, 14h32

“Engenho de cana”, pintura de Hercule Florence

Circula pela internet, num número alarmante de páginas, uma história sobre a origem da cachaça – e das palavras aguardente e pinga – que exala um bafo de falsidade perceptível a quilômetros de distância. Desmascará-la é um serviço de utilidade pública, e não apenas em nome da etimologia. Temo que seu sucesso se deva tanto à ignorância sobre questões de linguagem quanto – o que é muito pior – ao apelo insidioso de uma visão do Brasil que tem raízes no velho paternalismo racista da casa grande diante da senzala.

Vamos à lenda, que também pode ser lida numa caprichada sequência de slides aqui:

Antigamente, no Brasil, para se ter melado, os escravos colocavam o caldo da cana-de-açúcar em um tacho e levavam ao fogo. Não podiam parar de mexer até que uma consistência cremosa surgisse. Porém um dia, cansados de tanto mexer e com serviços ainda por terminar, os escravos simplesmente pararam e o melado desandou! O que fazer agora? A saída que encontraram foi guardar o melado longe das vistas do feitor. No dia seguinte, encontraram o melado azedo (fermentado). Não pensaram duas vezes e misturaram o tal melado azedo com o novo e levaram os dois ao fogo. Resultado: o “azedo” do melado antigo era álcool, que aos poucos foi evaporando e formou no teto do engenho umas goteiras que pingavam constantemente, era a cachaça já formada que pingava, por isso o nome (PINGA). Quando a pinga batia nas suas costas marcadas com as chibatadas dos feitores ardia muito, por isso deram o nome de ÁGUA ARDENTE. Caindo em seus rostos e escorrendo até a boca, os escravos perceberam que, com a tal goteira, ficavam alegres e com vontade de dançar. E sempre que queriam ficar alegres repetiam o processo. Hoje, como todos sabem, a AGUARDENTE é símbolo nacional!

Além de ridículo, o textinho é apócrifo. A maioria das páginas em que aparece o atribuem ao Museu do Homem do Nordeste, do Recife, mas isso é mais uma de suas mentiras, como já esclareceu num fórum internético, anos atrás, a coordenadora geral da instituição, Vânia Brayner: “Caros, sinto informar-lhes que esta história nunca foi contada pelo Museu do Homem do Nordeste, em nenhum de seus escritos, exposições ou qualquer documento do Museu. Nós, que fazemos o Museu do Homem do Nordeste, estamos numa verdadeira saga na internet tentando descobrir de onde saiu essa história… do Museu, tenham certeza, não foi”.

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Comecemos pelas inconsistências históricas. A aguardente (coisa e palavra) já existia quando se começou a fabricar cachaça no Brasil. A data precisa é incerta, mas, embora a destilação já fosse conhecida na antiguidade, pesquisas situam o início da destilação de álcool em torno do século XII. Se havia a aqua vitae, “água da vida”, como os alquimistas a chamavam, a palavra aguardente não ficava muito atrás: por mais que se aprecie a contribuição nacional a tal cultura, o fato é que seu surgimento deve tanto à cana-de-açúcar quanto a invenção da televisão deve a Roberto Marinho.

Os primeiros registros do vocábulo aguardente em português datam do século XV, antes de Cabral pisar aqui. Em espanhol, aguardiente era termo usado desde 1406. Até hoje um dicionário como o da Academia das Ciências de Lisboa informa que essa bebida é obtida pela “destilação do vinho, do bagaço de uvas, de cereais, ou de outro produto vegetal doce”. Nossa cana não ganha nem citação nominal, ofuscada pela bagaceira.

O latim medieval aqua vitae, que teve descendentes em diversos idiomas, pode ter tido uma participação na formação do vocábulo, mas o sentido literal de aguardente está mais próximo do holandês vuurwater, “água de fogo”. O fato é que a ligação entre álcool e água aparece em inúmeras culturas (vodca e uísque também compartilham essa ideia), o que torna difícil dizer como começou.

Já a pinga, outra palavra cuja etimologia o texto finge iluminar, surgiu muito tempo depois, registrada pela primeira vez em 1813. A princípio tinha a acepção de “gole, trago” – por meio da ideia de algo que apenas se pinga no copo, em pequeno volume – e só depois, por extensão, virou sinônimo de cachaça.

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(Curiosamente, a etimologia da própria palavra cachaça, termo existente desde o século XVII, destaca-se nessa bobajada pela ausência, o que é um bom pretexto para passarmos ao largo dela: uma das mais obscuras de nossa língua, o cipoal de teses antagônicas que os estudiosos lhe dedicam precisaria de uma coluna à parte para começar a ser enfrentado.)

Expostos os erros históricos, é fácil perceber no textinho em questão aquele rebuscamento desnecessário que costuma denunciar a etimologia fantasiosa. Se a aguardente arde na garganta, e como arde, por que imaginá-la irritando feridas abertas por chicotadas? Se a pingamos no copo, por que descrevê-la pingando do teto após uma estranhíssima evaporação acidental?

Simples: porque assim temos um retrato perverso do Brasil, essa terra inocente onde a aguardente foi descoberta por puro acaso, como se o mundo tivesse acabado de começar, e onde os escravos preguiçosos, desleixados, trapaceiros e – claro – cachaceiros compensavam tantos defeitos com sua musicalidade inata de bons selvagens: ai, que “vontade de dançar”!

Vai ser difícil tirar dessa aí o título de lenda etimológica mais idiota de todos os tempos.

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