“Caro Sérgio Rodrigues, acompanho e admiro sua coluna. A minha dúvida é: ouvi que a palavra ‘mulata’ descende da palavra ‘mula’, o que tornaria ‘mulata’ um termo racista. Isso procede? Atenciosamente.” (Marcela Pedrosa)
Sim, Marcela, o parentesco etimológico da palavra “mulato(a)” com “mulo(a)” é verdadeiro. Quanto a isso tornar racista o termo, bem, cabe aí uma longa – talvez infindável – discussão.
Em algum momento desse debate, vamos nos defrontar com a seguinte pergunta: apesar dos desdobramentos semânticos que muitas vezes conduzem seu sentido a territórios distantes – e às vezes até opostos – ao lugar de origem, devem as palavras ser eternas reféns da etimologia?
Tenho opinião formada sobre isso: não, não devem. Mas comecemos pela história.
O português foi buscar diretamente no latim mulus, no século XV, a palavra “mulo”, ou seja, “animal híbrido, estéril, produto do cruzamento do cavalo com a jumenta, ou da égua com o jumento”.
No século seguinte, por influência do espanhol, o termo “mulato” era usado para designar um mulo jovem, e foi certamente por analogia com o caráter mestiço do animal que a palavra passou – a partir de meados do século XVI, segundo o Houaiss – a ser aplicada também, como adjetivo e substantivo, a pessoas descendentes de brancos e negros.
O tom depreciativo da associação original é indiscutível e facilmente explicável pelo racismo escancarado de uma época escravocrata. O que cabe discutir é se vale a pena condenar o vocábulo por causa disso.
Fazê-lo significa manter artificialmente vivo na língua de hoje um parentesco praticamente esquecido, além de ignorar os novos sentidos – alguns deles francamente positivos, como o da exaltação da miscigenação – que foram se colando com o passar do tempo ao termo “mulato(a)”.
Não tenho a pretensão de esgotar o debate, mas lembro que não são poucas as palavras que, hoje vistas como inatacáveis, têm origem escusa. O singelo substantivo “rapaz”, por exemplo, é um parente etimológico do rapto e da rapina e nasceu com o sentido de “ladrão, salteador”.
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