O julgamento histórico sobre a tese do marco temporal para a demarcação das terras indígenas, que deve ser retomado hoje, 7, no Supremo Tribunal Federal, é muito mais do que a expressão de um país polarizado, ou mero objeto de uma negociação política acelerada por uma parcela do Congresso que tenta encurralar o governo e o próprio STF. É a possibilidade, isto sim, de o Brasil oficial dar um passo significativo para encerrar uma história de colonização que desrespeita direitos de povos indígenas e outras comunidades tradicionais, recorrentemente afetados por ataques, ameaças, discriminação, violência e mortes.
Enquanto 2 mil indígenas se mobilizam em Brasília, uma projeção na Torre de Londres lembrou o primeiro aniversário de morte do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, e reafirmou a tese “Marco Temporal Não, Demarcação Já”. Enquanto a bancada ruralista tentou nos últimos dias dissuadir o STF para retomar o julgamento, mantido pela presidente Rosa Weber (cumprindo uma promessa que fez em março a Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas), um grupo de artistas, intelectuais, indígenas e ativistas se organizou para um ato nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo em apelo aos ministros da Corte — encabeçado pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Human Rights Content e 342 Artes.
Enquanto isto ou aquilo, há uma faísca acesa entre o STF e o Congresso, com potencial de chama aberta. Na semana passada, a Câmara aprovou um Projeto de Lei para restringir as demarcações a territórios ocupados antes de 5 de outubro de 1988 — data da promulgação da Constituição Federal. Decisão que levou a líder indígena Txai Suruí, reconhecida internacionalmente, a chamar o atual Congresso de “Cabrais do século 21”. Hoje, diz ela, “não nos matam com balas, mas com a caneta”.
Vista como uma pressão de deputados sobre a Corte e também sobre o governo — hoje favorável aos povos originários — a decisão da Câmara diz respeito justamente ao que está em jogo no julgamento do Supremo: a definição de um marco temporal para determinar a validade ou não de uma demarcação de terra indígena.
O julgamento retomado hoje trata de uma ação envolvendo o governo de Santa Catarina e a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, área de 15 mil hectares ainda não homologada. Aberta pelo governo catarinense, a ação se baseia na tese de que só têm direito à demarcação das terras os povos que estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988.
A decisão do STF terá efeito geral. Ou seja, se aprovado o marco temporal, as próprias terras indígenas que já estão demarcadas poderão ser revistas pelo Poder Judiciário. Não serão poupadas nem mesmo áreas ocupadas por indígenas isolados, como o Vale do Javari, cenário da brutal execução de Bruno e Dom.
Até o momento, votaram apenas dois ministros: Nunes Marques, favorável ao marco temporal, e o ministro relator Luiz Edson Fachin, que votou contra a tese. O julgamento foi paralisado após pedido de vista — mais tempo para analisar o caso — do ministro André Mendonça.
Faltam os votos de oito ministros, e para quem acompanha o caso não é improvável que aconteça um novo pedido de vista, assim como, no Senado, o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), segure a tramitação do Projeto de Lei aprovado na Câmara. Uma colunista chegou a creditar a promessa de Pacheco de agir com “cadência” e “prudência” ao seu desejo de esperar por um clima menos acirrado para votá-lo, e pôs na conta da polarização uma possível “paralisia” daqueles que têm o dever constitucional der tomar decisões. O conservadorismo midiático, neste caso, tem dificuldade de diferenciar estratégia política de inércia.
O que está em jogo não é uma mera — ainda que grave — disputa entre ruralistas e indígenas, esquerda e direita, conservadores e progressistas, agro ogro e ambientalistas, tradição e progresso. É uma questão jurídica, constitucional, com adornos explícitos de qual nível de respeito aos direitos humanos em padrões internacionais o Brasil deseja alcançar. É também uma questão ambiental e climática, uma vez que a cobiça sobre as terras indígenas tem origem clara: o garimpo, a exploração ilegal de madeira, o desmatamento e um farto ecossistema de crimes ambientais que alimentam atividades econômicas lícitas — o legal que convive com o arrepio da lei e a violência sobre a terra e seus ocupantes.
Para quem acha que conectar uma coisa à outra é reducionismo, convém lembrar a tese do relator da ação em questão, o ministro Edson Fachin. Segundo ele, o artigo 231 da Constituição reconhece o direito de permanência desses povos independentemente da data da ocupação. A posse da terra, escreveu o ministro, é definida por tradicionalidade, não por um marco arbitrário no tempo. De acordo com o mesmo dispositivo da Constituição, a posse tradicional indígena é “distinta da posse civil e abrange, além das terras habitadas por eles em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
Se não suficiente, pode-se ouvir o chefe da ONU Direitos Humanos na América do Sul, Jan Jarab: “A posse das terras existente em 1988, após o expansionismo da ditadura militar, não representa a relação tradicional forjada durante séculos pelos povos com seu entorno, ignorando arbitrariamente seus direitos territoriais e o valor ancestral das terras para seus modos de viver”. Em 2021, a ONU apresentou ao Congresso um parecer analisando aspectos do projeto de lei do marco temporal que são incompatíveis com as normas internacionais de direitos humanos.
E nunca será demais lembrar a matança de crianças, adolescentes, mulheres e idosos na Terra Indígena Yanomami, em Roraima — território invadido por mais de 20 mil garimpeiros que, financiados pelo crime organizado, praticaram os mais hediondos crimes, incluindo abuso sexual de meninas e adolescentes. A tentativa de extermínio do povo incluiu a contaminação das fontes de água potável pelo mercúrio usado na separação do ouro dos cascalhos.
Nunes Marques, até aqui o único opositor da tese de Fachin no Supremo, sustentou que o marco deve ser adotado para definir a ocupação tradicional da terra por indígenas. Em justificativa, o ministro afirmou que a solução concilia os interesses do país e os dos povos originários.
A “conciliação” brasileira precisa ser sempre dimensionada no tempo, no espaço e nos atores em questão. Nossa história, sabemos, foi habitualmente marcada por composições de forças políticas e econômicas, e produziu as versões históricas dos mesmos vencedores. Derrubar a tese do marco temporal pode abrir um novo capítulo nessa tradição.