O STF está para alterar a lei sobre maconha. Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, chia que o Supremo está invadindo a competência do Legislativo, o que é uma meia-verdade. A lei que regula droga é omissa, prevê leniência para usuário e cadeia para traficante — mas não explica como distinguir consumo e tráfico: “O juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.
Como a decisão é subjetiva, o princípio constitucional de que “todos são iguais perante a lei” vira letra morta. E, ao recomendar que o juiz leve em conta “circunstâncias sociais e pessoais”, a lei o induz a favorecer ricos e brancos contra pobres e negros. O que é comprovado na prática: pobres/negros são presos com menores quantidades de droga do que brancos/ricos. O tema é, portanto, constitucional. O Supremo vai agir porque é urgente mexer na lei, o problema está em discussão há anos e o Congresso se faz de morto — por isso a chiadeira de Pacheco é uma meia-verdade.
O passo dado pelo Supremo será tímido: não legalizará o porte, apenas estabelecerá um critério para prender (etapa da qual o mundo civilizado já passou há tempos). Mas é um primeiro passo no caminho para entender que droga não é questão de polícia, é de saúde pública.
Não tem cabimento o Estado decidir o que um cidadão livre e maior de idade pode ou não ingerir, inalar ou injetar em seu corpo: isso é um direito básico. Tratar o cidadão como uma criança, incapaz de julgar os riscos que corre e tomar suas próprias decisões, é ofensivo e antidemocrático. Transformar direito em crime, nem se fala.
“Não tem cabimento o Estado decidir o que um cidadão livre e maior de idade pode ou não ingerir, inalar ou injetar em seu corpo”
O Estado deve proteger a saúde do cidadão, mas não à força. Até porque é inútil: o ser humano se droga há milênios e nenhuma lei conseguiu impedir que isso aconteça. E a lei é aleatória: permite tabaco, álcool e Rivotril, mas criminaliza maconha, cocaína e heroína. Por quê?
A criminalização, ao contrário, é prejudicial à saúde: sem regulação, não se sabe a qualidade do produto. Já a legalização permite controle: venda só para maiores, em farmácia, prescrição retida, quantidade controlada, publicidade vedada etc.
O argumento do custo com saúde tampouco para em pé. Se proibição não impede o consumo, o custo permanece. Mas se drogas fossem legais, pagariam impostos, ajudando no custo. Mais importante: a guerra às drogas cria um círculo vicioso que gera cada vez mais violência e corrupção policial e estimula as milícias, com custo incalculável em dinheiro e em vidas — haja vista as chacinas do Guarujá, em São Paulo, e da Penha, no Rio (que, vergonhosamente, muitos brasileiros, como Tarcísio de Freitas, acham aceitáveis ou até desejáveis).
A guerra às drogas é inútil, mata aos milhares, piora a vida de quem vive (incluindo brancos/ricos), custa uma fortuna e impede nosso desenvolvimento. Ela só interessa à indústria armamentista e a líderes religiosos demagogos que usam o discurso ultraconservador — e irracional — para obter votos e dízimos.
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2023, edição nº 2854