Há vários filmes em Guerra Civil. Nenhum é o filme de guerra americano típico, com grandes explosões, atos heroicos e clímax retumbante, com mocinhos salvando o país ou o planeta de criminosos, comunistas ou alienígenas.
Há o road movie, a viagem de jornalistas que vão de Nova York a Washington, mas, filosoficamente, vão da civilização (ou o que resta dela) ao que Joseph Conrad chamou de “o Coração das Trevas”. Há o filme sobre o fazer jornalístico, a obsessão e a ética do correspondente de guerra.
Há o romance de formação, com o batismo de fogo da “foca” (a jornalista novata). Há o processo interno da personagem principal, que vê a ideologia de sua juventude no entusiasmo da “foca” e a contrasta com o desencanto crescente da maturidade.
E há o conto de advertência. A guerra civil do filme se dá nos Estados Unidos no tempo presente e opõe um presidente a uma coalizão de estados. Não se sabe como ou por que a guerra começou, o que cada lado quer, quem apoia quem, onde estão o bem e o mal. As indicações são sutis.
O presidente parece autoritário, mas o filme não cai na armadilha de narrar uma luta entre trumpistas e antitrumpistas. A coalizão é liderada pelos dois estados mais ricos da federação, a Califórnia, que é democrata, e o Texas, trumpista. E seus métodos não são democráticos.
“Quando os confrontos acontecem, o que importa não é tanto quem estava certo, mas a destruição”
Guerra Civil não trata de quem tem razão, mas do que significa uma guerra para valer (feia, suja, bruta, perversa, estúpida), nos Estados Unidos, com americanos comuns combatendo dos dois lados. A última vez que os americanos tiveram uma guerra em seu próprio solo foi na Guerra Civil, há mais de 150 anos. No Brasil, a última vez foi na Revolução de 1932, e não foi nem remotamente parecido. Nenhum americano ou brasileiro vivo cogita uma guerra em casa. Guerra Civil presta o serviço de lembrar ao distinto público, americano ou brasileiro, que guerras civis acontecem. E que, quando acontecem, o que importa não é tanto quem estava certo, mas a destruição.
Guerra Civil não é um filme grandioso, não explode monumentos de maneira espetaculosa — com uma exceção. Sem ver a estátua que o edifício abriga, poucos espectadores reconhecerão o Lincoln Memorial, homenagem ao homem que manteve o país unido durante a Guerra Civil autêntica e é considerado o maior presidente que o país já teve. Ele refundou a democracia e a definiu: “O governo do povo, para o povo e pelo povo”.
A democracia é a maneira de resolver conflitos pacificamente; sem ela, resta a violência. A destruição do Lincoln Memorial representa melhor do que qualquer coisa a morte da democracia e do sonho americano. A remoção do presidente do filme não trará de volta a democracia e a unidade antes existentes: após derrubarem o presidente, Califórnia e Texas começarão a brigar entre si.
Americanos e brasileiros perderam a capacidade de dialogar, estamos viciados em briga. Direita e esquerda culpam-se e xingam-se mutuamente, como se isso resolvesse o problema em vez de agravá-lo. Não é certo que vá acontecer uma guerra civil nos Estados Unidos ou no Brasil. Mas estamos no caminho que leva a ela. Não sairemos dele se não pararmos de brigar.
Publicado em VEJA de 3 de maio de 2024, edição nº 2891