Donald Trump não apenas superou Kamala Harris em todos os estados-pêndulo, como ganhou até no voto popular, coisa que um republicano não conseguia desde George W. Bush, em 2004. Fez maioria no Senado e deve conseguir o mesmo na Câmara.
Nos últimos anos, Trump atacou e descredibilizou a imprensa, aparelhou a Justiça, nomeou os juízes que revogaram o direito ao aborto. Deu incontáveis declarações racistas e misóginas, prometeu uma onda de deportações, ameaçou encarcerar adversários, foi classificado como “fascista” por seus próprios ex-auxiliares.
É despreparado, pouco equilibrado e um inimigo da democracia que questionou o resultado da eleição e encorajou um ataque ao Congresso em busca de um golpe de Estado. É alvo de inúmeros processos e foi condenado por vários crimes federais.
“Superamos obstáculos que ninguém acreditava ser possível superar”, afirmou. Tem toda a razão: como é possível que alguém como ele tenha vencido?
A vitória de Trump diz mais sobre seu país (e sobre o nosso) do que sobre ele mesmo.
Lá, como cá, grande parte da população tem a percepção de que “o sistema”, viciado, não corresponde às suas expectativas. Nos EUA, a globalização e a revolução tecnológica trouxeram insegurança no emprego e estagnação salarial, especialmente na classe trabalhadora e em áreas rurais. E o combate de Biden à pandemia gerou forte inflação.
“Grande parte da população tem a percepção de que ‘o sistema’, viciado, não corresponde às suas expectativas”
No Brasil, a globalização foi benéfica e ajudou a reduzir a pobreza, mas a devastação econômica dos anos Dilma reduziu boa parte dos ganhos. O Estado cobra impostos escorchantes, mas é incapaz de fornecer bons serviços. E dificulta a vida de quem quer empreender.
Mudanças sociais resultantes de imigração (no caso americano) e do aumento de direitos para as minorias (nos dois países) geraram desconforto e ressentimento entre idosos e conservadores. A esquerda abandonou a defesa dos pobres e abraçou o identitarismo, pauta de classe média que hostiliza homens e brancos (de ambos os sexos). A polarização é acirrada pelas redes sociais.
A incapacidade das elites política e econômica de fornecer respostas adequadas para essas questões tornou-as alvo de profunda desconfiança. O resultado desta semana sugere que essa desconfiança é maior hoje do que era em 2016, quando Trump foi eleito pela primeira vez.
Faz tempo que a população manda recados sobre sua insatisfação. No Brasil, tivemos junho de 2013; depois, a Lava-Jato e a revelação do petrolão; Bolsonaro foi eleito e quase reeleito; em seguida veio o 8 de Janeiro; e, há pouco, Pablo Marçal por um triz não foi ao segundo turno em São Paulo.
Diante de tantos alertas, o que faz a classe política? Lula se comporta como se estivesse tudo bem. A esquerda, derrotada, diz que quer se refundar — mas repete as fórmulas equivocadas de sempre. O Centrão, vitorioso, se comporta como se nada houvesse. Ministros do Supremo continuam, monocraticamente, tomando liberdades indevidas com a Constituição.
Daqui a dois anos tem eleição no Brasil. É bom a turma acordar.
(O bolsonarismo está acordado. Eduardo Bolsonaro, por exemplo, foi acompanhar a apuração da eleição na casa de Trump, na Flórida.)
Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2024, edição nº 2918