Comenda que Lázaro Ramos recusou homenageia expoente da luta contra o racismo
Confira entrevista com Abdias do Nascimento publicada nas páginas amarelas de VEJA de 1978

A comenda do Senado que o ator Lázaro Ramos rejeitou homenageia Abdias do Nascimento (1914-2011), o infatigável escritor, ator, diretor, pintor, jornalista, professor, deputado e senador que, em tantas trincheiras, notabilizou-se pela luta contra o racismo e pela valorização da cultura negra. Abdias fundou o Teatro Experimental do Negro, em 1944, e o Museu da Arte Negra, em 1968, pouco antes de exilar-se como professor-visitante de Yale, nos Estados Unidos. De volta ao Brasil, ajudou a criar o PDT e, como deputado nos anos 1980 e senador nos 1990 (assumindo vaga deixada por Darcy Ribeiro), batalhou pela fixação do Dia da Consciência Negra, pelas cotas para negros e para tornar o racismo crime inafiançável. Lázaro disse em nota que, embora considere a história de luta de Abdias uma referência, não se sente “confortável e nem desejoso de nenhuma homenagem, pois acho que o momento do país é de conscientização, de organização para compreender em que momento histórico estamos e quais passos precisamos dar para fazer com que a tão sonhada igualdade aconteça um dia de verdade”.
VEJA entrevistou Abdias para as páginas amarelas da edição de 28 de junho de 1978, apresentando-o da seguinte forma: “Um professor brasileiro corre o mundo e constata o patético isolamento em que vive o negro no Brasil, cortado de sua raiz africana”. Ainda não era a volta definitiva de Abdias do exílio, mas ele pode aproveitar a passagem para conhecer dois netos e fazer as vezes de padrinho no casamento do filho do escritor Gerardo Mello Mourão. Confira abaixo trechos da entrevista (e clique aqui para ler a íntegra da edição):
Como se explica a ausência do negro nas esferas de decisão do Brasil? A alienação do negro brasileiro é um aspecto da manipulação que tem sofrido. Foi-lhe sonegada até a informação de como ele compõe a população brasileira. Os especialistas da ONU acusam a carência de objetividade dos censos brasileiros, que omitem o item cor. Outro aspecto da manipulação da força negra é a separação de negros, mulatos, pardos, que vem desde os tempos coloniais, quando tudo se fez para que ódios tribais e diferenças culturais fossem acentuados. Hoje, a separação se faz no sentido da gradação epidérmica – uma classificação que visa a romper a unidade e a invalidar essa força.
Essa unidade, essa força, não abalaria o processo de integração do negro na sociedade brasileira? Não se corre o risco de cair em separatismo? A integração só pode ocorrer sem esse tipo de propósito que traz ou o desejo do opressor ou a fraqueza, o medo, o temor do oprimido. A concepção do que o negro significa como ser na realidade do país, essa consciência tem que surgir. Mas não dentro de um jogo convencional que sempre o deformou como ser humano. Ele deve contribuir como portador de uma cultura específica, de valores que devem ser incorporados à cultura brasileira num nível ecumênico, de igualdade. Atualmente, o negro tem o nível de segunda classe. É o pitoresco, o engraçado, o folclore.
Como analisa o caso brasileiro em relação às outras comunidades negras na diáspora? O caso brasileiro é muito raro. É surpreendentemente diferente da luta do negro norte ou latino-americano. Nesses lugares, o negro é minoria. Aqui, não. Um legítimo governo de maioria no Brasil teria de contar com a presença marcante do negro. Mas sempre houve a dominação de uma elite minoritária. Portanto, o negro nunca pôde exercer nenhum poder no nível de sua identidade cultural, de sua identidade étnica original. Ele sempre teve de se subordinar às concepções, às ideias, às paternalizações de origem europeia. E, sempre que se quer destacar a presença negra ou a cultura africana no Brasil, se faz folclore ou sensacionalismo. O que predomina são os valores europeus.
Acredita possível reencontrar essa identidade perdida? O negro brasileiro ficou muito só, sem informação, sem ter uma forma de renovar sua visão de mundo, de alimentar sua força social, política e econômica. Nesse estado de solidão, tornou-se um marginal da família negra mundial. O negro brasileiro não tem ideia de como a nação negra, a família negra é grande. Este tem sido o lado mais trágico da situação do negro no Brasil: os cortes dos liames de nossas origens. Temos de reatar esses laços.