“Uso de animais em experimentos não é opcional”, diz pesquisadora
Por Guilherme Rosa e Juliana Santos, na VEJA.com: Desde a invasão ao Instituto Royal, em São Roque (SP), na semana retrasada, um velho debate voltou à tona no Brasil. Ativistas, personalidades da TV e parlamentares se juntaram a uma turba de vozes das redes sociais para pedir um fim às pesquisas científicas que se utilizam […]
Por Guilherme Rosa e Juliana Santos, na VEJA.com:
Desde a invasão ao Instituto Royal, em São Roque (SP), na semana retrasada, um velho debate voltou à tona no Brasil. Ativistas, personalidades da TV e parlamentares se juntaram a uma turba de vozes das redes sociais para pedir um fim às pesquisas científicas que se utilizam de cobaias animais. Os testes foram tachados de cruéis, desnecessários e antiquados. Pesquisadores brasileiros passaram a ser vistos como monstros sádicos que utilizam procedimentos abandonados no resto do mundo em troca do lucro fácil.
Faltava nessa discussão, no entanto, uma voz importante, os próprios cientistas. Ninguém melhor do que biólogos, geneticistas, veterinários e médicos para dizer se é possível eliminar as cobaias animais nos testes. Entre os pesquisadores, a opinião é unânime: os bichos são imprescindíveis para os experimentos. Por isso, são permitidos no mundo todo; e sem eles não há como desenvolver novos remédios e tratamentos — a ciência médica poderia decretar falência no país.
“O uso de animais em experimentos não é opcional. Existem situações em que eles simplesmente não podem ser substituídos”, diz Silvana Gorniak, pesquisadora da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP que realiza pesquisas com roedores para estudar o potencial terapêutico e tóxico de diversas substâncias naturais.
Seu estudo atual é sobre a planta Solanum malacoxylon, conhecida popularmente como espichadeira. “Quando consumida naturalmente, ela é tóxica. Estamos estudando se o seu princípio ativo, usado em quantidades menores e controladas, pode funcionar como um substituto da vitamina D”, explica. Para descobrir se o potencial terapêutico da planta pode se reverter em tratamentos reais, é necessário realizar testes em modelos animais. Caso a substância seja testada diretamente em cobaias humanas, o risco para os voluntários é imenso.
Segundo a cientista, a decisão de usar bichos em suas pesquisas não é simples — nenhum pesquisador faz isso porque gosta. Ademais, esse tipo de estudo é muito caro, pois o custo das cobaias animais eleva em muito o preço dos experimentos. Por isso, há décadas, laboratórios de todo o mundo procuram por métodos alternativos. Nos últimos anos surgiram novas técnicas de cultura celular e modelos de computador, capazes de substituir os animais em algumas pesquisas, mas não todas. Não há como simular o funcionamento conjunto de sistemas complexos do corpo, como o circulatório, nervoso e imunológico. “Como replicar a depressão em uma cultura de células? Não existem métodos alternativos para testar anticancerígenos, vacinas contra aids, medicamentos anti-hipertensivos. Para saber se eles funcionam, precisamos testar em animais”, diz Silvana.
Camundongos e cães
Ao contrário do que tem sido apregoado por ativistas nos últimos dias, o uso de modelos animais — mesmo pequenos roedores — é importantíssimo para o estudo de doenças em seres humanos. “O camundongo é pequeno, fácil de reproduzir, tem um curto ciclo de vida e regeneração rápida, o que o torna uma ótima cobaia. Seu genoma é muito parecido com o humano, o que ajuda a responder muitas perguntas, principalmente da área genética”, afirma a geneticista Mariz Vainzof, coordenadora do Laboratório de Proteínas Musculares e Histopatologia Comparada do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP.
É claro que nenhuma cobaia é absolutamente fiel à fisiologia humana, mas cada linhagem de animal pode fornecer respostas para questões diferentes dos pesquisadores. Os roedores são um ótimo modelo para a pesquisa conduzida por Mariz, por exemplo, mas péssimos para a depressão. Nesse caso, os pesquisadores teriam de estudar algum outro animal. Poderia ser, inclusive, um cachorro.
Em algumas pesquisas, os cientistas precisam de mais de uma espécie — cada uma responderá a questões diferentes dos cientistas. A talidomida é um exemplo da importância desse tipo de procedimento. A droga chegou às farmácias no final da década de 1950, como uma espécie de sedativo. Anos mais tarde, descobriu-se que ela era responsável por produzir deformações em recém-nascidos, levando à morte de milhares de crianças. O problema foi que a droga só havia sido testada em ratos e camundongos — animais imunes a seus efeitos adversos. Os pesquisadores deveriam ter realizado experimentos também em outras espécies, capazes de emular outros sistemas do corpo humano. Atualmente, esse erro não se repetiria.
Cuidados com as cobaias
Durante uma pesquisa científica, os animais têm de receber todos os cuidados necessários. Cobaias que sofram maus tratos podem arruinar uma pesquisa, alterar seus resultados, impedir seu financiamento e barrar sua publicação em periódicos científicos. “Não sei de onde as pessoas tiram que os cientistas estão loucos para ficar matando os bichinhos. A maioria de nós é formada em biologia. Estamos nessa área justamente porque gostamos da natureza”, afirma Mariz.
Para alguns dos pesquisadores, começar a realizar testes em animais é um choque. Mesmo com todos os cuidados, nem sempre é fácil seguir os procedimentos necessários. “Quando isso acontece com algum dos meus estudantes, eu o coloco em contato com algumas das crianças que estamos tentando tratar, com sua família. E mostro que esse é o nosso objetivo: estamos fazendo isso em prol de uma criança doente”, diz Mariz, cuja principal pesquisa busca a cura para a distrofia de Duchenne, uma doença degenerativa que atinge um entre cada 3 000 homens.
Paula Cristina Onofre Oliveira, aluna de doutorado de Mariz, é um exemplo desse tipo de pesquisador. Antes de se envolver com as pesquisas, ela havia ingressado em movimentos pela defesa dos direitos dos animais, participado de seminários e cursos que analisavam métodos substitutivos. Hoje, ela usa cobaias em seus estudos sobre a genética das doenças neuromusculares. “Não vou dizer que é fácil. Sempre tentamos minimizar o sofrimento e o número de animais, mas às vezes é impossível escapar desse tipo de experimento. Para conseguir fazer isso, temos de estar sempre pensando nos pacientes”, diz.
Preconceito animal
Gilson Volpato especialista em bem-estar animal e professor do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências da Unesp de Botucatu, realiza uma série de experimentos com peixes para provar que esses animais também são capazes de sofrer e sentir dor. “A pesquisa pretende mostrar que outros animais além dos cachorrinhos e gatinhos sofrem. Essa é uma crença humana: quanto mais próximo o animal do homem — e mais bonitinho ele for — mais acreditamos que ele é capaz de sofrer. Mas a ciência tem mostrado que isso não é verdade.”
Segundo Volpato, a decisão de utilizar animais em experimentos científicos só é justificada quando não existem alternativas e quando o objetivo é um bem maior. “A ciência é uma consequência direta da evolução humana. Uma ferramenta que surgiu para ajudar o homem na luta por sobrevivência na natureza. É aceitável o ser humano usar essa faculdade para resolver problemas de saúde e aumentar a longevidade”, afirma. “Nesse sentido, utilizar animais em pesquisas que podem curar doenças é um processo natural. Agora, causar sofrimento nos animais por motivos meramente lúdicos não é natural, é um absurdo.”
Enquanto a pesquisa científica seria eticamente permitida por ter objetivos maiores, diversas outras atividades rotineiramente praticadas pelo homem seriam, elas sim, cruéis e injustificáveis. “Veja a pesca esportiva, na qual o animal é fisgado, tirado da água e depois devolvido ao mar. É lógico que ele sofre — e em troca de pura diversão. Isso é sacanagem. O mesmo acontece com algumas raças de cachorro, criadas apenas para o prazer humano de ter um pet. São animais com deformações físicas, dificuldade para respirar, problemas de pele. O indivíduo pode até cuidar bem do animal, mas ele claramente sofre. E em troca do que? Em troca do indivíduo ter um cachorro para amar. Isso é pura incoerência”, afirma.
Cosméticos na mira
Pelo mesmo motivo, Gilson Volpato se coloca contra a o uso de cobaias animais em pesquisas para cosméticos — o que ainda é aprovado pela legislação brasileira. “São duas pesquisas diferentes. Uma visa um bem maior, a outra fazer um novo tipo de perfume.” Na sua opinião, a indústria da beleza deveria achar outro jeito de testar os produtos ou parar de lançá-los.
O Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea) admite discutir a proibição de testes de cosméticos em animais. Uma série de questões legais precisa, no entanto, ser acertadas primeiramente. “Estamos caminhando para isso, mas é uma regra que precisa ser discutida com racionalidade entre cientistas, técnicos e parlamentares”, diz Marcelo Morales, coordenador do Concea.
Debate eleitoreiro
Segundo os cientistas, a invasão do Instituto Royal tornou menos saudável a atmosfera em que o debate acontece no país, e cada vez menos racional. Laboratórios de faculdades procurados pelo site de VEJA para participar da reportagem preferiram se abster, com medo da reação de ativistas, da invasão de seus laboratórios e da perda de anos de trabalho.
Não é uma questão de criticar todas as organizações de defesa dos direitos dos animais. Segundo Volpato, a ação desses ativistas tem sido, historicamente, muito importante. “É bom ter alguém olhando e fiscalizando nosso trabalho. Em função de denúncias desses grupos, já deixamos muitas práticas para trás, verdadeiras atrocidades deixaram de ser cometidas e hoje temos uma legislação sobre esse assunto”, diz. “Mas eu queria saber daqueles que querem banir totalmente as pesquisas com animais o que eles diriam para quem tem um parente internado em um hospital.”
A volta dessa discussão entre políticos foi ainda mais atribulada e irracional. Movidos pela poderosa cena do resgate dos beagles, deputados já se pronunciaram a favor da criação de um CPI para investigar o caso e, quem sabe, proibir todos os testes com animais. As maiores autoridades no assunto não podem ficar fora dessa discussão. “Quando o político entra no debate, ele vem pensando em que posição tomar para ganhar a próxima eleição, em qual discurso será melhor para ele”, diz Volpato. “Em países sérios, os políticos ouvem os cientistas envolvidos quando discutem questões técnicas. Infelizmente no Brasil, a opinião dos cientistas costuma ser ignorada.”