É a primeira vez que se recorre a um instrumento legal para violar o estado de direito? Não, não é. No dia 23 de março de 1990, a Polícia Federal invadiu a sede da Folha de S. Paulo. A operação estava, digamos, autorizada por uma cartilha distribuída pelo Ministério da Economia. Alegava-se que a empresa havia cometido uma irregularidade qualquer com notas fiscais. Desnecessário dizer que se tratava apenas de uma operação de constrangimento contra um jornal considerado, então, hostil ao governo.
Abaixo, reproduzo o material disponível no acervo on line do Banco de Dados da Folha. O episódio levou Otavio Frias Filho, diretor de redação do jornal, a declarar: “Considero a invasão de uma violência estúpida e ilegal. Por trás dos esbirros policiais, está Collor de Mello, a quem não reconheço como presidente da República, mas como usurpador vulgar da Constituição”. O jornal também escreveu um editorial intitulado “escalada fascista”.
Antes como agora, a agredida é a imprensa, não a empresa Folha da Manhã ou a Editora Abril. Quem não tiver isso claro se comporta como esbirro de ditadores e, para ficar nos termos da Folha, fascista.
Reportagem da Folha sobre a invasão
Uma equipe formada por dois agentes da Polícia Federal, chefiados pelo delegado João Lourenço, e seis fiscais da Receita Federal invadiu ontem, por volta de 15h30, o prédio da empresa Folha da Manhã S/A, a pretexto de comprovar irregularidades na troca de faturas emitidas em cruzados novos por faturas em cruzeiros. A empresa Folha da Manhã edita, além da Folha, os jornais “Notícias Populares” e “Folha da Tarde”. Ao final de uma truculenta inspeção, que durou quase duas horas e meia, dois diretores da empresa – Renato Castanhari, diretor-financeiro, e Pedro Pinciroli, vice-diretor-geral – foram levados à Polícia Federal para prestar depoimento. Os agentes levaram também, a título de “testemunha”, a secretária da diretoria, Vera Lia Roberto. Pinciroli é também vice-presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ).
O pretexto usado pelos agentes do governo não convenceu nem remotamente o diretor de Redação da Folha, Otavio Frias Filho: “Considero a invasão de uma violência estúpida e ilegal. Por trás dos esbirros policiais, está Collor de Mello, a quem não reconheço como presidente da República mas como usurpador vulgar da Constituição”, disse o jornalistas.
O grupo de policiais, armados e com o delegado Lourenço portando, além da arma, um walkie-talkie, apresentou-se à recepcionista Carim Santos Paliari Oliveira dizendo que queria falar com Castanhari. A recepcionista respondeu que precisaria anunciá-los. Os policiais não deixaram. “Somos da Polícia Federal e você não pode nos barrar”, reagiram. Um dos seguranças da empresa tentou impedir a invasão, mas foi dissuadido.
O grupo chegou ao 9o andar do prédio da al. Barão de Limeira, 425, centro de São Paulo, o andar da diretoria, e intimou a recepcionista Ana Paula dos Santos Veiga a levá-los diretamente à sala de reuniões. Queriam falar com Octavio Frias de Oliveira (o acionista majoritário da empresa). Quando invadiram a sala de reuniões e viram que estava vazia exigiram ser levados imediatamente à presença de Octavio Frias de Oliveira. A recepcionista tentou ponderar que precisava anunciá-los à secretária, Vera Lia Roberto. A resposta foi uma ameaça de prisão.Em seguida, o grupo invadiu a sala em que trabalha a secretária e fez a mesma exigência. Queria ser levado imediatamente à presença da diretoria da empresa. Vera Lia mal conseguiu balbuciar alguma coisa e foi também ameaçada de prisão.Todo o grupo, então, acompanhou Vera Lia à sobreloja do prédio, onde fica o escritório de Renato Castanhari. Os fiscais da Receita levaram cópias de duas faturas, uma em cruzados novos e outra em cruzeiros, e pediram toda a documentação da empresa relativa a faturamentos nas duas moedas. A partir daí, o comportamento de policiais e fiscais foi diferente. Os fiscais disseram que estavam no prédio apenas para constatar os fatos. “Somos apenas soldados”, chegaram a dizer. Mas o delegado Lourenço insistia em levar detidos para a sede da PF os dois diretores da empresa.
Enquanto policiais, fiscais e funcionários da Folha da Manhã se reuniam na sobreloja, um dos agentes da PF voltava ao 9o andar e dava ordens à secretária Vera Lia para acompanhá-lo. Jornalistas e editorialistas que trabalham no 9o andar quiseram saber o motivo do que parecia ser a prisão de Vera Lia e o policial respondeu que ela iria “como testemunha”.
Na porta do elevador, o policial desculpou-se pela maneira como haviam agido, alegando que estavam acostumados “a tratar com outro tipo de gente”. Mas acrescentou: “Vai acabar a impunidade dos ricos”. Quando o jornalista que acompanhava Vera Lia ponderou que a recepcionista Ana Paula e a secretária Vera Lia não eram exatamente pessoas ricas, o policial devolveu: “Há certas secretárias que sabem como fazer o patrão se evadir e aí acaba o flagrante”.
Na sobreloja, prosseguia o exame da documentação, já então acompanhado pelos advogados da Folha, Ives Gandra Martins e Luís Francisco Carvalho Filho. Estavam também presentes, por solidariedade com a empresa invadida, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo, José de Castro Bigi, os conselheiros da Ordem Gérson Mendonça e Renato Belli e o advogado José Carlos Dias.Ives Gandra telefonou para o ministro da Justiça, Bernardo Cabral, que mostrou sensibilidade para o problema criado com o jornal, a ponto de transmitir o caso à ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello. Ela telefonou em seguida para Ives e passou o telefone a Eduardo Teixeira, secretário-executivo do ministério. Teixeira disse a Ives que o ministério iria estudar o critério para a cobrança de serviços prestados pelas empresas jornalísticas, se em cruzados novos ou cruzeiros, a partir dos elementos que a Associação Nacional dos Jornais lhe encaminharia ainda hoje (sábado).
Mas o delegado Lourenço não tinha sensibilidade alguma. Exigiu que os diretores da Folha da Manhã assinassem imediatamente o auto de infração preparado pelos fiscais da Receita. Luís Francisco ponderou que eles não poderiam assinar sem que o documento fosse antes lido por Ives Gandra. O delegado ameaçou então invadir a sala na qual estavam reunidos todos os advogados. Luís Francisco pediu que ele esperasse um minuto. Lourenço exibiu então as algemas que levava e disse: “Vocês não podem impedir a ação da polícia”.
Enquanto o delegado exibia sua turculência, o diretor-geral da Polícia Federal, delegado Romeu Tuma, também responsável pela Receita Federal, telefonava para Otavio Frias Filho para lhe dizer que não se tratava de uma prisão, mas de um convite para prestar depoimento. Tuma garantiu igualmente que, se tivesse havido excessos dos policiais, seriam apurados e punidos.
Também o chefe da Polícia Federal em São Paulo, Marco Antônio Veronezzi, garantiu ao advogado José Carlos Dias que não haveria prisões. Os diretores da empresa Folha da Manhã iriam à Polícia Federal a título de prestar depoimento e poderiam, inclusive, sair em seus próprios carros ou nos dos advogados, o que de fato ocorreu. Os advogados ainda ousaram perguntar porque a secretária Vera Lia estava sendo presa. Resposta do delegado Lourenço: “Porque eu quero.”
Editorial do jornal sobre a invasão
A escalada fascista
Assassinos da ordem jurídica, anunciadores do tumulto fascista que se desencadeia sobre a sociedade brasileira, esbirros de uma ditadura ainda sem nome – “Era Collor”? “Brasil Novo”? – invadiram ontem a Folha de S. Paulo. Este fato culmina a série de agressões, de arbitrariedades e de violências que, em nome do combate à inflação, configuram um clima de terrorismo de Estado só comparável ao dos períodos mais infames e vergonhosos da história brasileira.
Esta Folha, que criticou duramente a candidatura Fernando Collor – como, aliás, todas as outras -; mas que aprovou a audácia do presidente na edição das medidas econômicas, vê essa audácia transformar-se em prepotência e tirania; vê nos apelos do chefe de Estado aos “descamisados”, nas ameaças que profere contra a livre iniciativa, na arrogância pretensamente incontrastável de suas atitudes, na precária corte de bajuladores que se acanalha à sua volta e no espetáculo de desorganização política, de obscurantismo e mistificação que se estabelece em seu governo, os sinais inequívocos, alarmantes e inaceitáveis de uma aventura totalitária. Não se agrediu um jornal. Agrediu-se a democracia. O chefe de Estado não parece ver limites para seu messianismo; este se constrói na arbitrariedade, sustenta-se na ignorância, mantém-se pela força, prossegue no arbítrio: é o momento de dizer basta.
A democracia brasileira não tolera aspirantes a Ceausescu ou versões juvenis de Mussolini. Aberta, como qualquer empresa, à fiscalização das autoridades, esta Folha não aceita intimidações grosseiras nem ameaças policiais. O governo federal investe na subversão das leis e na destruição das liberdades políticas. A escalada repressiva terá de ser interrompida: mais uma vez, quando já parecia consolidado o processo de transição para a democracia, cumpre lutar contra os inimigos da liberdade.