Carlos Marighella foi anistiado. Escrevi um post lembrando a sua obra. Entre outras delicadezas, em seu “Minimanual do Guerrilheiro Urbano”, ele defendia que seus comandados e outros tantos que tomassem aquele texto como guia recorressem a emboscadas, como a que o matou. Ele legitimava a prática de seus algozes — apenas não estavam do mesmo lado. Defendia ações abertamente terroristas e não ficou só na teoria. Praticou o que escreveu. Muita gente morreu por decisão sua e de seu grupo. No texto em questão, apenas lembrei parte pequena do que fez e do que escreveu.
Recebi uma mensagem irada de uma senhora que se diz professora de história. Dados alguns jargões e cacoetes, acreditei que falasse a verdade. Fui ao Google e a encontrei nas redes sociais “debatendo” isso e aquilo… Coitados dos nossos jovens! Quantos ficarão na ignorância! Não publico o nome da bruta porque não vou lhe dar cartaz nem satisfazer o ego: “Viu só? Aquele Reinaldo lá publicou o que escrevi…”. Parte da sua invectiva contra mim, no entanto, ajuda a pensar. Leiam que mimo.
“Por que você faz tanta questão de ser desagradável e, como você mesmo diz, escrever o que mais ninguém escreve? Pode ser que ninguém mais escreve porque é um absurdo. Você já parou para pensar que não é Deus e que pode estar errado? (…) Marighella foi um verdadeiro herói nacional e sabia que não enfrentava os canhões com flores. Essa sua obsessão de ser do contra é patética (…)”
E ela segue me ofendendo — e ofendendo também a língua e o subjuntivo: “Pode ser que ninguém mais escrevA…”, senhora professora!!! A continuar assim, mestra, “nós num pega mais os peixe…” — para escrever em haddadês… Vamos ver.
Se explicitar a realidade documental é ser “desagradável”, então sou. Lamento informar, senhora, que milhares de leitores se interessam pelos fatos. E meu post sobre Marighella traz apenas os fatos. Não fui eu que atribuí a ele a defesa do terrorismo, como a senhora afirma em outro trecho de sua mensagem. Ele efetivamente FEZ a apologia de tal prática, sem meias palavras.
Ora, minha senhora, eu, com efeito, ignoro “não ser Deus” porque, para ter tal consciência ativa, seria preciso que, em algum momento da trajetória, tivesse me imaginado… Deus, constatando, desolado, que a minha impressão era falsa. Como me sei demasiadamente humano e falível, então não poderia constatar NÃO SER o que IMPOSSÍVEL SERIA ainda que, louco, ambicionasse SÊ-LO. Leia de novo, mestra. Leia de novo…
A cada linha que escrevo, é evidente, penso que posso estar errado. É próprio de quem labuta com as palavras e com as ideias. Escreve-se a favor de determinados pontos de vista e contra outros tantos. Um texto só se torna relevante se é de combate, se incorpora a polêmica para fazer uma escolha — e é de sua natureza ser espreitado pelo risco do erro. Assim, respondendo à sua indagação, afirmo: sim, conto com a possibilidade de estar errado todos os dias, várias vezes por dia, a cada post. Mas não me acovardo, não. Sempre faço uma escolha: os fatos.
Quanto às flores e aos canhões, acho que a metáfora já era brega quando empregada por Geraldo Vandré nos anos 60 do século passado, não é mesmo? Mas a senhora tem razão: se há coisa que Marighella não fazia era recorrer a flores. Ele preferia bala e explosivos…
É com essa seriedade que a senhora encara seus alunos? Não divulgo seu nome também para poupá-la de si mesma e não expor a nu sua ignorância diante dos jovens. Cedo ou tarde, eles teriam acesso a essa resposta, e eu tenho enorme carinho por professores porque penso nos que tive; lembro-me que eu mesmo fui um deles.
Eis o ponto
Mas eu entendo a reação da Dona Fulana professora de história. É razoável que ela estranhe o meu texto no cotejo com o que eventualmente leu na dita “grande imprensa”, nos portais, sites etc. Lembrei a obra real de Marighella não porque pretenda ser diferente dos outros; torno-me diferente dos outros porque lembrei a obra real de Marighella. A senhora entendeu a sutileza da coisa? De novo, leia de novo… NOTA: não sou o único a fazê-lo; sou dos poucos.
Noto, caros leitores, que seria perfeitamente possível glorificar — já que querem assim — a vida de Marighella sem omitir a sua obra. Ora, que se explicitem suas escolhas, suas ações, sua teoria revolucionária (expressa no minimanual e em outros livros). E que se diga em seguida que aquele, afinal, era mesmo um caminho virtuoso. Do ponto de vista intelectual, considero menos digno omitir seus crimes do que absolvê-lo, entenderam? Que se diga com todas as letras: “Matou, sim; explodiu bombas, sim; defendeu o terrorismo, sim, mas era uma saída legítima, revolucionária, humanista…”. Sei lá eu quantas barbaridades elogiosas se poderiam dizer. Eu continuaria a achar o pensamento abjeto, mas menos covarde. Divergir sobre as escolhas — especialmente sobre as escolhas éticas — é parte do jogo. Escoimar uma biografia de aspectos incômodos para relevar o Varão de Plutarco é um procedimento desonesto e covarde.
O Brasil tem outros heróis ou quase-heróis incômodos. Pegue-se o caso de Getúlio Vargas, por exemplo. Foi um tirano. Sua polícia torturou, aleijou e matou durante o Estado Novo. Não obstante, setores da esquerda e nacionalistas de várias tonalidades fizeram dele um herói, como se não tivesse havido três Getúlios: o da Revolução de 30, o do Estado Novo e o suicida cheio de amanhãs supostamente gloriosos. O tirano teve sua obra esmaecida pelo fervor do falso profeta, e as esquerdas (que ele tratou no porrete) e o nacional-estatismo o transformaram no nosso único “founding father”. Nada se compara, no entanto, à mistificação que está em curso, a que deu início, em muitos casos, a Comissão da Anistia e que terá sequência com a dita Comissão da Verdade.
Ora, cantar as glórias de Marighella significa declarar que não existe pecado no terreno das esquerdas. O mais relevante, meus caros, é que isso tem pouca ou nenhuma importância no que respeita ao passado. O terrorista que liderou a ALN está morto e enterrado, a exemplo de suas vítimas, tornadas anônimas — a Comissão da Verdade não quer saber que nome tinham, quais eram seus laços familiares, que afetos se romperam com a sua morte. Eram meros coadjuvantes da “narrativa” estrelada por aquele cavaleiro sem mácula.
As omissões sobre a vida e a obra de Marighella servem ao presente, aos supostos “resistentes” de hoje. Ora, naquele caso, era a suposta grandeza da causa que dava ao terrorista licença para matar e para recomendar que se matasse — de forma aleatória se necessário — como método. Fiquem atentos, nestes dias, às desculpas dos chefes criminosos do mensalão. Também eles falam em nome de uma “causa”; também eles dizem estar em luta contra inimigos terríveis e poderosos; também eles afirmam — como quer Janio de Freitas… — que se trata de um confronto entre os reacionários que mataram Getúlio e lideraram o golpe de 1964 e as forças populares…
Como quem tem apreço pela história, senhora professora — e, definitivamente, não parece ser o seu caso, embora, Deus Meu!, tenha salas de aula à sua disposição —, não deixo que a farsa prospere sem emitir a minha opinião. Como quem tem apreço pelo futuro, não deixo que vigaristas — não sem protesto ao menos — nos imponham, em nome de sua moral, o que jamais lhes imporíamos em nome da nossa: a justificação do crime.
Aqui os tiranos não se criam.