Sempre que alguém começa com esse negócio de que o Big Brother é irresistível e que todo mundo dá uma “espiadinha”, inventando um pretexto qualquer, ocorre-me a boutade de Karl Marx (sim, o dos furúnculos no traseiro), que era um excelente frasista, ao definir Luís Bonaparte, o sobrinho que seria a farsa do tio (ao menos na sua leitura), no “18 Brumário”: “Na sua qualidade de fatalista, ele [Luís Bonaparte] vivia e vive ainda imbuído da convicção de que existem certas forças superiores às quais o homem, e especialmente o soldado, não pode resistir. Entre essas forças estão, antes e acima de tudo, os charutos e o champanhe, as fatias de peru e as salsichas feitas com alho”. Pois é… Há quem realmente e de fato não assista ao Big Brother – assim como deveria haver soldados que detestassem salsicha com alho. Mas o caso grita, não é?, está em toda parte, ocupa as redes sociais. Impossível ignorar.
Aqui e ali, fiquei sabendo, como todo mundo, que esta edição do programa estaria mais, deixem-me procurar as palavras, “sensualizada”, com as peladas e os pelados atirados como nunca. Então tá! Um dos participantes, já expulso do programa, foi acusado de ter feito sexo não consensual, ou quase isso, com uma de suas colegas. Bêbada, a moça estaria sem condições de dizer “não” caso fosse essa a sua vontade. Bem, poupem-me dessa hora. Não vi e não verei. Já escrevi aqui sobre a mais recente redação da “lei do estupro”. Eu a considero conceitualmente falha. Se um caso, ainda que agressivo, de assédio já caracteriza um estupro, parece-me que o estupro propriamente dito perde um tanto de sua gravidade, o que é lamentável. Mas sigamos. A gritaria nas redes sociais contra o suposto estupro no Big Brother tem seu lado positivo. Acho bom e civilizado que não se dê de barato que a bêbada, afinal, escolheu o risco. Pode ter escolhido outros, não o de fazer sexo sem a sua explícita permissão. É evidente que o programa tentou ignorar os protestos, mas sentiu cheiro de carne queimada e teve de ceder. Quem faz um “Big Brother” que requer a participação de milhões tem de saber que pode acabar um dia no paredão. Foi o que aconteceu.
Reality shows são espetáculos deprimentes, seja o Big Brother, da Globo, a sua versão com alfafa, da Record, ou a da Band, com champanhe, besteirol e “mulheres ricas”. Nas férias, vi um troço inacreditável na televisão americana: um concurso de… cupcakes!!! As doceiras se matavam para cumprir as tarefas, diante de juízes muito rígidos, que faziam digressões sobre a “generosidade” do açúcar ou a “agressividade” da essência de amêndoas. Era de fazer inveja aos enólogos quando dissertam sobre o “caráter” e a “austeridade” dos vinhos – porque também os há “alegres” e “diletantes”. Entendo… Fiquei tão perplexo que uma das minhas filhas comentou, rindo: “Pai, você deixou cair o queixo…” O mundo, às vezes, é mau.
Não poderia haver nome mais estúpido para esses programas do que “reality show”. Tem-se tudo ali, menos a tal “realidade”. E daí? Ninguém é inocente: os participantes investem na criação de personagens para tentar ganhar o público; as TVs manipulam o material de modo a atrair sempre mais audiência, e os telespectadores aceitam ser enganados. Quando alguém é filmado 24 horas por dia, um trabalho competente de edição pode transformar um príncipe num ogro e um ogro num príncipe. Com um vasto material em mãos, a direção inventa uma narrativa e decide perdedores e vencedores. Já venceram o bobalhão, o matuto do interior, a pobrezinha, o gay, o valentão amoroso e cordial, a gostosa, o malcriado meio homofóbico… Um otimista diria que o brasileiro é mesmo um povo sem preconceitos. Um pessimista diria que é uma gente sem critério. Alguém apenas realista avalia a competência da edição para criar personagens que caiam no gosto popular.
Quando uma câmera é ligada, a primeira vítima, meus queridos, é sempre a verdade. Vale até para a fotografia. A luz, o corte escolhido, o flagrante congelado… Uma foto pode ser o testemunho de um fato, mas já é uma recriação. Repórteres de TV, alguns cobrindo eventos trágicos, sabem muito bem do que falo. Basta que se acendam as luzes, e indivíduos reais, com sofrimentos reais, transformam-se, quase sempre, em personagens um tanto estridentes da própria tragédia. Muitos, como diria o poeta, passam a fingir que é dor a dor que deveras sentem. O próprio jornalismo corre o risco de transitar para a ficção. Se é assim mesmo numa atividade que, se séria, tem o compromisso com a objetividade, imaginem quando falamos de programas em que as personagens dependem, para continuar no jogo, da aceitação do público. Digo sem medo de errar que há mais verdade nas novelas do que nos reality shows. Ainda que os autores estejam sempre atentos aos desejos do público e a seu afeto ou repulsa por essa ou por aquela personagens, o enredo é certamente mais fechado do que o desses programas.
Os que tentam nos convencer de que todos os soldados são fascinados por fatias de presunto e salsichas com alho insistem que os reality shows “dizem muito do Brasil” à medida que se debatem valores, preconceitos etc. É o caso de não forçar a amizade, né? É possível fazer psicologia, sociologia e antropologia até daquela viúva de Nelson Rodrigues que foi chupar Chicabom no portão logo depois de enterrar o marido. A rigor, em qualquer evento besta de rua, estamos, de alguma maneira, inteiros como povo. Essa história de que o Big Brother ou sua versão com alfafa, da Record, são um posto de observação privilegiado das vontades e do pensamento do Brasil é, vênia máxima, pura mistificação. Com um pouco de boa-vontade, dá para confundir até Ratinho com Malinowski…
O episódio do Big Brother talvez sirva, vamos ver, de um freio de arrumação – não tenho a menor esperança de que possa ser o canto do cisne dos reality shows. Infelizmente, como sabemos, eles se multiplicam. Está em todo canto que a tal cena que foi vista como estupro por muita gente se seguiu a uma noite de bebedeira e pé-na-jaca promovida pela direção do programa, como acontece em todas as edições. Num país em que o alcoolismo é um problema sério de saúde pública, a escolha me parece irresponsável – com desdobramentos nada agradáveis desta vez. Não estou entre aqueles que defendem uma televisão que só cultive os “bons valores do civismo e da moral”, definidos por um estado-patrão. Isso é uma besteira autoritária. Ocorre, queridos, que o contrário do vale-tudo não são a censura e o moralismo tacanho, mas o bom senso. É claro que o Big Brother está na 12ª edição porque milhões de pessoas, afinal, gostam de vê-lo. Mas poderiam gostar – e isso ficou claro algumas vezes – de coisa muito pior. Qual é o limite?
A Globo sabe muito bem que leva aos telespectadores – sempre lembrando que crianças e jovens gostam do programa e podem acessar informações na Internet – uma narrativa que é construída não dentro, mas fora da casa. Quando menos, pode-se dizer que o episódio alerta para a possibilidade de sexo de risco motivado por bebedeira. O dado nada desprezível é que a tal bebedeira faz parte da história.
É preciso saber quando se ultrapassa a linha. E o Big Brother ultrapassou. Não foi um erro ou distração deste ou daquela. O rapaz e a moça estavam, a seu modo, seguindo o roteiro. Hora de repensar. No curto prazo, a audiência deve bater nos píncaros da glória. No médio e no longo, pode-se perder bem mais do que pontos no Ibope: a reputação!
De novo: o contrário do vale-tudo não é o moralismo tacanho, mas o bom senso.